Espetáculo e confete

Espetáculo e confete

Georgia Alves

Pode ver que o Carnaval deixa o espírito de uma cidade mais leve. Eu sei, bem sei. Há sempre aquele desalmado que despeja o que sobrou do suor e cerveja longe da polida praticidade do banheiro químico, mortos de fome continuam vagando entre desarranjados de um lugar para morar e ser alguém, mesmo assim. O espírito, digo no geral da cidade que quer ser só espetáculo e confete, é leve.

Moro em uma kitnet de janela e porta, sigo ouvindo o barulho de pneus dos carros sobre a camada de asfalto da Avenida Norte. Também apelidada por meus estudantes de Avenida “morte”.

É. Isso porque a tal via, apesar de lembrar nome de importante governador que primava pela melhoria de vida de pessoas mais pobres e excluídas de políticas públicas nos campos e de outros direitos civis nos anos de ditadura militar, não tem nada de arborização, nada mesmo. São calçadas irregulares e faixas de pedestres radicalmente desrespeitadas. Nada disso é hoje, diz do.espírito reinando depois de bailinhos e troças circulando pelos bairros, algo que sinto em meu peito, não está do mesmo jeito.

Apesar das incertezas de quem começa o ano sem saber o.que será dele. Com o mesmo peso dos dias “normais”. Falo sobre imposto de renda, boletos, mais do que escolas de samba consagradas, só eles sempre vencem.

O trânsito contínuo dos dias de trabalho árduo, ainda que aqui logo se torne intenso, pois ainda não são seis da manhã, a via me chega hoje mais leve. As notas circulares das rodas de ônibus girando sobre o asfalto já atingem, a cada cinco segundos, os meus ouvidos. Ainda assim, é Carnaval. E insisto.

O espírito da cidade está mais altivo e de um peso leve. Aquelas pessoas que trabalham em silêncio, escravizadas também pelo espírito a serem somente dedicadas sem se dar a entender o que fazem da vida, diariamente na labuta pelo porvir, abnegadas sem um questionamento mais fundo, mesmo elas, moídas ou não pelos excessos da noite anterior, ou do dia anterior, estão mais felizes. A liberdade é um ato revolucionário. E é preciso errar ou desobedecer nem que seja por uma fração de segundo, uma decisão de erro, por pura liberdade de espírito, para que nos deixemos mais leves.

As cores da noite anterior ainda saltam diante dos olhos foliões. A fantasia da namorada, a mise-en-scène do namorado, a maquiagem extravagante dos amigues brilhando sobre os olhos desiludidos dos amigos retraídos. Todos os sonhos frustrados de um ano inteiro, não é que cheguem a resolução nenhuma no Carnaval, mas só o gesto de uma alegria doida, gratuita, já nos faz suportar de outro jeito o peso das cidades.

Recife é hoje puro espetáculo e confete voando aos quatro ventos. Já começou esse tempo de uma alegria simples, de riso de canto de olhos e bocas, uma cidade cheia de jeito para a brincadeira e que fará de nós mais humanos ainda que por apenas alguns dias do ano.

 

@georgia.alves1

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