Seis e meia-meia dúzia

Seis e meia-meia dúzia

Por Geórgia Alves

Di Cavalcanti. Mariane Perretti. Dois dos artistas cujas obras foram danificadas ou destruídas no último dia nove de janeiro deste ano de 2023 já me eram caras. Não vivo a vida de pintar em telas ou painéis de grande dimensão, mas como professora de Arte, de uma escola pública, sei bem o tanto de exigência com o corpo e o espírito. Então, venho aqui, humildemente, pedir que me dê a mão, para acompanhar com alguma compaixão imediata, o que tenho a dizer.

Construir um texto é um trabalho. Não é apenas árduo no sentido de verificar a veracidade das informações. Cruzar dados, relacionar fatos, checar enunciados, aprofundar o gesto de pesquisas e pesquisas e pesquisas. Exige diligência, discernimento, tomar de uma a seis decisões por minuto. Que fique bem claro, uma a seis, seis a dez, dez a uma dúzia. Espero que me acompanhe, até o final, então preciso dizer: Seis não é meia dúzia.

Arte não é um objeto, em si mesmo. Não apenas. Uma escultura, uma pintura, um painel em vidro e aço ou resina, não é apenas um painel. O objeto é visto das mais diversas formas pelo olho que o observa. Muitos o enxergam. Tendo olhos são, podem ver. Mas, veem o objeto. Não a obra. A obra em suas narrativas.

Veja bem, olhar nem sempre é ver. Percebe? O nome Di Cavalcanti, de Emiliano, não é apenas o ser Emiliano Di Cavalcanti (1897 – 1976). Existe uma história e uma trajetória que o levou até se torna no Di, que salvamos do fogo do Modernismo. E que, infelizmente, nos idos de 2022, quando reclamávamos apenas a tela “Samba”.

Havíamos relacionado fatos que o conduziram até o Salão Nobre do Palácio do Planalto pela extraordinária figuração do painel “Mulata”, pintado por ele entre 1960 e 1962, não chegou ao terceiro andar do Palácio, por um acaso. Muitos outros artistas, com igual empenho ou mais, igual talento ou mais, não chegaram ao mesmo andar que a tela, repito, intitulada “As Mulatas”, de Di Cavalcanti. Não apenas pelo fato de ser orçada em oito milhões de reais que as sete perfurações na tela derramam sangue simbólico no piso do prédio que representar poder.

As pessoas, hoje presas, que saíram de suas casas a pretexto de lutar pela família ou pela pátria, ignoram o que representa o vitral “Araguaia”, esculpido e projetado sob assinatura de Mariani Perreti, também tema de observação fina, por ocasião da morte da artista que bem representa Arte Brasileira, pelo mundo afora. Entre ignorar a obra, história, artista, o olhar de respeito que o mundo lá fora atribui ao trabalho legado, guarda mais distâncias com o real que as pessoas imaginam. Artista brasileiro bem que sabe que não se está, jamais, livre do horror.

Nem da ignorância.

A bailarina de Victor Brecheret, arrancada de seu pedestal, encontrada no chão do Palácio, esculpida em 1920, com a matéria-prima de um tempo anterior às transformações irreversíveis do século XX. Onde e quando ofendeu estes que se dizem amantes da pátria? A vênus Apocalíptica, de Marta Minujin, jogada do lado de fora do Palácio, quer dizer que estas pessoas, tão cheias de pecado – precisam dizer para si mesmas, várias vezes, e em vão, o nome de Jesus Cristo, Deus ou a palavra Igreja. Em seus erros, os que pregam a violência, devem estar dizendo: Os que erram também serão arremessados às pedras?

Ou jogados das alturas, no vazio dos penhascos?

Galhos da escultura de Krajcberg foram quebrados e jogados longe sugerem que o mesmo destino poderia vir a ser o melhor para os que cometeram o crime? Para os veículos de comunicação, gostaria de dizer, não ressuscitaram tanto a ideia dos vândalos. Reforço aqui, texto não se faz apenas com palavras, mas, sobretudo, ideias.

Não vi o princípio no que os movia quando invadiram Brasília, nada a lhes assemelhar aos detratores de Roma. Os mesmos dos arruaceiros e terroristas, – e assim são chamados por, enquanto fato constatado, pelo intuito de “provocar terror social generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade – integridade – nacional”, como reza – para usar uma palavra por eles gasta – a Lei Brasileira Antiterrorismo 13.260/2016.

Não agiram, em conjunto, pelo princípio de quem vingava perdas. Não apenas.

Não insultados em sua condição humana, propriedades e lugares ou modos de existir, fizeram por absoluta ignorância. Destruir e danificar obras de Arte, que representam a identidade nacional, dentro e fora do país, é algo muitas vezes mais mesquinho e inferior. Baixo. Digo sem reducionismo. Penso, que não se deva, também, usar a palavra “Capitólio”, não existe tal lugar. Não no Brasil. É outra forma simplista de falsa propaganda. Fake.

Nem é news. Andy Wahrol já pregava o desejo – e talvez o direito – de que, no futuro, todos teriam quinze minutos de fama, internacionalmente falando. Este é o modo mais lúcido de ver. Porque: Venhamos e convenhamos, generosidade atribuir a quem não tem crédito junto ao deposto Donald Trump tamanha importância.

Três prédios, patrimônio e monumento arquitetônicos representantes dos poderes políticos da Democracia Brasileira foram depredados, vilipendiados, e danificado, de várias e escatológicas maneiras, invadidos, sob uso de grande violência. Assim como o fizeram a diversas obras de Arte, ao Patrimônio Material e Imaterial do povo e da História do Brasil. Ao também material de uso efetivo para realizar o funcionamento prático desta democracia.

Peças de Alfredo Ceschiatti e Athos Bulcão também estão na relação de danos. O que dizer da própria cidade de Brasília? Erguida por toda força de candangos tantas vezes enquanto projeto arquitetônico somente atribuída a Niemeyer, mal e mal mencionando a participação do engenheiro pernambucano, Joaquim Cardozo.

Equipamentos e instrumentos de trabalho usados diariamente por trabalhadores, pagos com o dinheiro público, com o suor do rosto de toda e todo contribuinte, foram atingidos, destruídos, danificados, a golpe de paus e pedras. Cena que imediatamente remeteu às frases de Einstein. O cientista que, tragicamente, contribui aos primeiros estudos que levam à produção da primeira bomba atômica.

Albert antecipara: Não se sabe bem ao certo quais serão as armas usadas no terceiro conflito mundial, mas é fatídico que as ferramentas de um eventual quarto conflito sejam os mesmos usados pelos nestes atos criminosos contra a pátria, o patrimônio e os valores artísticos e da democracia brasileira. Não restando também em nós, dúvidas, pela lógica, não há sobrar nada do mundo de antes.

De todo trágico e dantesco evento, sim – não lamentavelmente não se pode chamar de “acontecimento” o que não surpreendeu, sendo inclusive antecipado, em diversos avisos, alertas, comunicados – o mais simbólico é saber do painel do artista Jorge Eduardo, de 1995, intitulado “Bandeira do Brasil”, boiando na água da Praça dos Ministérios. Por fim, usarem o mobiliário dos três poderes para atingir vidros do prédio do Congresso Nacional.

Dizerem frases como, o exército brasileiro nos abandonou, nos entregou para a polícia do Distrito Federal. O pai, com filha à tira colo, dizer, com alteridade, como se não tivesse nenhum discernimento ou escolha:

“nos colocaram no ônibus, passamos doze horas, e estamos até agora sem refeição”. Neste caso, doze, duas meias dúzias. Prato cheio de ovos saídos da mesma cloaca daquela antiga e conhecida serpente. Oroboricamente, devorando o próprio rabo.

Pior mesmo é não entender a grande piada, do grande brother.

Queriam, mais uma vez, vender a ideia da nossa estupidez. De que todos e quaisquer esforços feitos por indivíduos, academias, instituições, poderes brasileiros, de nada vale diante da vulnerabilidade e ingênua forma de viver dos nossos. Muito menos da esperteza, super valorizado ego e super inflacionada moeda deles.

Nisto, infelizmente, quem está por trás dos brasileirinhos verde e amarelo, das vovós e papais, caminhoneiros e aposentados, as insignificantes ervilhas que pisaram a rampa, o gramado, o lago, nossa memória e patrimônio, não tem olhos para ver.

E se os tivesse, dificilmente, seriam capazes de ver. Já que há tempos estamos aqui. Escrevendo, dizendo, noticiando, transmitindo. E foram, ainda mais, incapazes de ouvir.

@georgia.alves1

 

 

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