Quando os mortos falam mais que os vivos

Quando os mortos falam mais que os vivos

Por Geórgia Alves – Canal do YouTube

Conheci Raphael Alberti, historiador e autor do livro “Um espião silencioso”, publicado pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE, 2020), em debate promovido pelo Circuito LivroNews e Academia Pernambucana de Letras (APL), tivemos a oportunidade de debater sobre a publicação do livro no Nordeste e lançar conjuntamente um conjunto de obras em vários gêneros. E como sua primeira reimpressão acontece neste ano de 2022, no não tão distante mês de março, pedi para que aceitasse meu convite de entrevistá-lo a contrapelo.

Embora bem saiba que a História jamais se vive de trás para frente. Não exista o modo subjuntivo para a forma conjugada do verbo haver na primeira ou na terceira pessoa do singular do pretérito imperfeito do subjuntivo. Se eu houvesse conhecido o @rapha_alberti, ou se ele houvesse enviado convite para o lançamento do livro dele para @uma_comunicacao. Havendo nosso encontro ocorrido neste mês de junho, trouxe o livro de Raphael comigo e para as noites no hospital enquanto acompanhei meu pai aguardando por cirurgia de rotina.

Ainda que resultado de sua pesquisa de Mestrado, a narrativa é extremamente fluida e construída de forma tão perfeitamente concatenada e com uma simplicidade tão atraente que não tive qualquer dificuldade em encaixar as informações em meus pensamentos, mesmo experimentando estes momentos da atenção mais exigente quando se trata de dividir cuidados e atenções de acompanhante e com a leitura de livro.

O trabalho de Raphael é dedicado ao paraquedista Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, que se recusou a jogar uma bomba no Gasômetro do Rio, em 68. Recusa que salvou mais de cem mil pessoas. Lembrei da passeata dos cem mil envolvendo artistas como Milton Nascimento, Tônia Carrero e Clarice. Sérgio, como destaca Raphael, fora “injustamente esquecido pela História”. Já o personagem principal da trama que escolheu não teve o mesmo fim. Logo revelamos mais sobre o agente duplo José Nogueira cuja morte deixa vários indícios de assassinato.

       

Depois da pesquisa e do livro, do trabalho minuciosamente realizado pelo Mestre em História, Política e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV – RJ), que será transformado em Podcast pela produtora Half Deaf.

Professor nas cidades do interior de Pernambuco, Caruaru e Toritama, é bacharel com licenciatura em História pela UFRJ. Não é por acaso que seu livro é publicado por uma editora pública com um conselho editorial exigente, como no caso da CEPE.

Com uma generosidade paciente de aceitar minhas desculpas por algum atraso em abrir a janela da transmissão ao vivo, Raphael respondeu a mais perguntas do que transcrevo aqui. Nosso diálogo na íntegra pode ser visto no canal do YouTube Geórgia Alves.

Vamos lá!

 

Geórgia Alves – Raphael, acho que você recupera muito mais sobre a História do Brasil com teu livro que alguém que se ocupe de fatos mais destacados (menos reveladores) que a misteriosa morte do agente e os anos imediatamente anteriores e posteriores ao que tudo indica, levou ao assassinato. Qual a fagulha que iniciou teu trabalho?

Raphael Alberti – A pesquisa começou por acaso. Eu tinha muito em mente que não queria fazer uma monografia em História, não queria fazer algo que todo mundo já tivesse feito. Fazer uma revisão bibliográfica ou falar sobre temas muito estudados, eu tenho muito isso em mim, geralmente as coisas que escrevo são coisas inéditas, é o que me deixa instigado. Eu penso assim, se eu quero estudar o período da ditadura é melhor eu ler um especialista que já fez um livro de alguém que escreveu sobre a História da Ditadura seria melhor que ler o existem tantas lacunas na historiografia brasileira para serem preenchidas que a gente só precisa confiar mais no nosso potencial e investir na pesquisa. E eu lembro que, no Ensino Médio, um professor me atentou para um caso chamado a caixinha do IBAD – Instituto Brasileiro da Ação Democrática – nunca tinha lido em livros didáticos. E me chamou muita atenção. Grandes multinacionais que eu consumia, inclusive, financiaram parlamentares de forma ilegal na campanha de eleitoral de 1962, no Brasil. Aquilo me chocou muito, caramba, como não tem um filtro sobre nisso? Provavelmente os escândalos mais bizarros na história do Brasil. Quer dizer, pegar multinacionais que investem um dinheiro em parlamentares para que eles vão contra as plataformas de reformas sociais que o João Goulart, que ele queria implantar no país na década de 60, no período da Guerra Fria. E aí, fiquei muito motivado para estudar isso mais a fundo. Decidi fazer minha monografia estudando a CPI do Ibad/Ipes. Uma comissão parlamentar de inquérito que iria investigar as atuações do Ibad – Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o Ipes – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais – eram duas instituições que faziam propaganda anticomunista, eles divulgavam, por exemplo, curtas antes dos filmes nos cinemas, faziam “jornalismo”, alardeando o cenário brasileiro político. Então, eu procurei investigar essa CPI eu queria ler nas minúcias as fontes documentais, e eu peguei a ata da CPI pra ler. E um belo momento, num parágrafo assim, estava escrito em letras bem miudinhas tinha assim: “De acordo com o Genival Rabelo, que é o diretor da revista Política & Negócios, ele acusa o Ibad de assassinar o jornalista. Eu fiquei muito chocado com essa informação. A bibliografia que tinha lido sobre esse estudo do Ibad acusava “eles” de corrupção eleitoral, não de um homicídio. E eu fiquei… Taí um furo jornalístico e ninguém prestou atenção nisso. Quem foi esse jornalista, por que mataram ele, quem matou ele? É verdade essa acusação? É mentira? Quais foram os motivos? E isso me trouxe até esse momento.

Geórgia Alves – Você fez do seu trabalho minucioso um livro atraente para o leitor, transformou em um livro que está longe de cair no apelativo, uma peça onde a própria Literatura vai contar mais a verdade que se fosse pelo caminho do Jornalismo. É brilhante como você transformou a pesquisa em peça literária, o termo está entre teus capítulos, você utilizou do “paradigma indiciário” de Ginzburg (GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2011). Explica para gente a expressão e a condução do trabalho. Essa escolha por espelhar na Literatura a verdade dos fatos.

Raphael Alberti – Te agradeço as palavras. Gentileza de tua parte. A intenção era investigar todo esse tema, levar à Academia, ganhar uma validação, mas ao mesmo tempo não deixar de dialogar com todas as camadas sociais, todas as classes, as pessoas que não são especialistas nos Direitos Humanos, porque ao meu ver essa é uma grande falha da Academia. Muitas vezes você se deslumbra um pouco com os títulos e acaba se voltando somente para um grupo. E esquece um pouco… Principalmente a gente que estudou em escola pública, é mais que justo que a gente retorne isso para a população, para que não fique simplesmente uma dissertação no fundo de uma biblioteca, que ninguém ler. Fazer com que essa investigação tenha um sentido para a família, por exemplo, do espião envolvido, e também que a forma de narrativa seja agradável também para todos os públicos. Não faz sentido colocar termos muito complexos de teoria histórica, metodológica, que não vão caber para uma leitura mais abrangente. Então, a investigação tem método científico e histórico, mas também uma preocupação literária. A gente está fazendo isso também no Podcast. No sentido de a gente levar como se fosse uma história de true crime. Antes de você saber de História do Brasil, da Guerra Fria, de cenário internacional, política e geopolítica, de que “Estou diante de uma história de um crime mal resolvido, o que será que aconteceu?” e a partir daí você ir expandindo a lupa e mostrando, olha, ao mesmo tempo que aconteceu esse caso minúsculo, de uma pessoa na Cinelândia, no centro do Rio, que que foi empurrado de seu apartamento. É difícil, mas quando se encaixa, consegue amalgamar todos os públicos.

Geórgia Alves – Então vamos agora falar do fato em si. Do enredo. Infelizmente eventos que acontecem. A gente tem uma história bem recente como do Dom e do Bruno e a gente se depara com a indiferença, nesse estado de não-direito da vida humana. Pessoas que, enquanto jornalistas, vão investigar uma história e têm um fim trágico, a vida ceifada, e trazer dentro da tua experiência que enfrentou várias dificuldades para chegar aos termos da pesquisa. Que traz a vida como grande valor, ou seja, nossas humanidades. O espião silenciado, a gente percebe pelas características que você evidencia, do corpo atlético, na condição de ter ainda ter sobrevivido à queda, aqui entre aspas, mas que merecia ter sua história recuperada, ter sido retirado do canto de página como no caso que você deparou na tua investigação da CPI. Uma trama tão embricada onde a realidade supera a ficção

Raphael Alberti – O protagonista dessa história se chama José Nogueira, ele é um cearense da cidade de Mundaú, uma cidade litorânea muito bonita, um pouco antes de Jericoaquara, ele vem cedo para o Rio de Janeiro, por volta dos dezessete ou dezoito anos. Consegue emprego no Diário da Noite, jornal que não existe mais. Na época era muito conhecido. E, logo de cara começam a perceber que ele tem um faro investigativo muito importante, porque ele desvenda junto com outros repórteres, o caso da imprensa marrom, não sei se os mais novos têm conhecimento dessa expressão e até hoje a gente usa isso, era uma imprensa sensacionalista. Esse termo surge a partir dos casos investigados com a presença do José Nogueira, de revistas que chantageavam famosos e anônimos. Tiravam fotos comprometedoras das pessoas e pediam dinheiro para não publicar. O Grande Otelo caiu nesse golpe, a Tônia Carreiro. Teve um cineasta que chegou até a se suicidar, por conta do que seria uma “vergonha”. Tiravam fotos da pessoa com a amante, ou revelando uma orientação sexual que ela não queria revelar em público. Então, ele conseguiu revelar esses fatos com chefia do Alberto Dinnes, que foi do Observatório da Imprensa, uma referência do Jornalismo, que chefiava o Diário de Notícias, na época e que era uma referência. Ele começa a ganhar muito prestígio no Jornalismo com essas reportagens. Óbvio, né, que por ser um caso de 1963 que comecei a investigar em 2010 é muito difícil montar esse quebra-cabeças certinho, essa história tem várias lacunas que não consigo responder, isso não faz com que a pesquisa não seja detalhada. Em algum momento específico, o José Nogueira começa a trabalhar no Serviço de Inteligência da Marinha e ele começa a trabalha tanto para a esquerda quanto para a direita. Isso faz dele personagem muito diferente das histórias sobre a Ditadura pré-64, que são geralmente muito estereotipadas. Quando você lê Literatura dessa época, em geral, você encontra aquele jovem que estudou no colégio Pedro II ou no Cap da UFRJ, e foi militante da União Brasileira dos Estudantes, quando veio a Ditadura, virou guerrilheiro, ou militante que saiu do Brasil. Ou o outro extremo, a pessoa revolucionária, conservadora, rica que quando chega o Golpe começa a ter mais privilégios, o José Nogueira não é nada disso. Ele transita entre esses dois pólos. Ele é uma figura enigmática até para mim. É difícil dizer se é um herói ou um vilão. Ou se é os dois ao mesmo tempo. Ele faz coisas muito interessantes, de defesa dos direitos humanos, de denúncias de pessoas que atingem a democracia, mas ao mesmo tempo ele participava de grupos anticomunistas, de cruzadas anticomunistas, movimentos anticomunistas, enfim, era uma pessoa muito influente, sedutora, persuasiva. Ele era um galã, teve relacionamentos com vedetes. Confirmados pela família dele. Era um cara que conseguia ser influente entre ministros de extrema direita e de extrema esquerda. O governo João Goulart teve essa dubiedade. As Forças Armadas estavam divididas. Hoje não tem mais isso. Hoje as Forças Armadas são completamente reacionárias, naquele tempo não. Ainda existiam os militares que apoiavam o Governo João Goulart. O José Nogueira era essa figura está completamente polarizada. No dia três de março de 1963, ele cai do apartamento dele na Cinelândia, no centro do Rio, na Rua das Marrecas, para quem conhecer o Rio ter uma certa noção, uma rua que fica entre a Cinelândia e a Lapa. E, a polícia encerra o caso um dia depois como acidente. E a gente começa a ver as semelhanças, com a atualidade. A Polícia Federal acabou de afirmar com poucos dias de investigação que o assassinato deles não teve mandantes. Não teve nem tempo para eles investigarem como podem afirmar isso?

Continua no YouTube Geórgia Alves e Instagram de @rapha_alberti e @georgia.alves1

 

 

 

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