O casaco e o pulôver vermelhos

O casaco e o pulôver vermelhos

 

Geórgia Alves

Um casaco vermelho. Pensei bem pensado ser esta peça simples a mais significativa a vestir para a leitura sobre o retrato do Recife de Clarice. Encantada pela ideia de doação de pulôveres na cor vermelha às crianças desabrigadas durante a segunda guerra. Orientação dada quando ela serviu à Cruz Vermelha, expressamente demandada em carta, e cumprida.

Tanta coisa passou de lá para cá. Algumas marcadas na memória e na história, para sempre. Imagino quantas milhares de pessoas estão tendo que escolher, neste exato momento, entre memórias e peças de roupa. Uma ou duas para levar numa duríssima travessia ao indefinido? Quantas deixaram seus lugares de origem, suas vidas e histórias, suas casas, familiares, e se abrigarem enquanto refugiados à procura de reconstruir-se. Reerguer-se em países que lhe sirvam de abrigo?

Muitos mais seguem aventurando no desconhecido. Milhares caminham neste momento em direção à Polônia. Outros países. E ainda que os bombardeios tenham iniciado pelo lado russo, não se deve atribuir todos os erros deste quebra-cabeça aos compatriotas dostoieviskianos.

Agora que mísseis seguem pela madrugada explodindo em Kiev e outras localidades, a mando de Moscou. Muito há em jogo desde novembro do ano passado e que também remonta a 2014, 2008, 1945. Antes das primeiras tropas deslocadas às regiões de fronteira entre Rússia e Ucrânia. Seus povos já se fundiram e desentenderam antes. Não se pode ignorar a interferência norte-americana, as bases que firmam interesses da OTAN.

Numa guerra, todos os lados saem perdendo. Não há vitória que não contabilize perdas. Nem mesmo o maior vencedor pode ignorar danos. Para além do choro, dos gritos de aflição, da energia despendida em nome do poder e seu princípio defensivo ou perverso, há a mágoa. O ódio que um dia foi amor ou admiração, múltiplos sentimentos às avessas. O que se perde de memória e história em outros territórios controlados pelos Estados Unidos?

Vi pessoas confrontando com as imagens de destruição. É aterrador. Devastador o que mais se pode prever dos desdobramento. Necessário entender que em nome da ordem mundial tais conflitos se formaram, legando o cenário de hoje.

Vi o rosto de Clarice, uma brasileira que por circunstâncias de guerra e perseguições, conflitos semelhantes, ainda nasceu no território que leva o nome de Ucrânia. Mas a imagem expressava a opinião de quem usou a beleza, seu rosto, penso, não deva ser exposto diante deste conflito, ainda menos quando a favor ou contra um dos lados. Ninguém deseja a guerra, só quem se expõe ao confronto, como dito, em seus prós e contras, assumir seus motivos.

Cabe em todo e qualquer código de diplomacia pedir o fim das divergências, amainar a força poderosa de destruição. Que deixem Clarice fora disso é o mais justo. Mesmo porque ela afirmou nunca ter pisado em solo ucraniano e, enquanto escritora brasileira em viagem, apesar de convite com despesas pagas, dispensou a visita à terra que expulsou seus pais. Dizem que a grande população de imigrantes ucranianos se encontra no sul do país. É provável que quem mantive laços tenha mais a dizer neste momento. Mais do que diria a escritora da crônica Falando em viagens (A descoberta do mundo, 1984, Editora Rocco, RJ). Indiscutivelmente parte da Literatura Brasileira. Rezemos pelo fim do conflito, igualmente pelo respeito às soberanas. A preservação das lutas que travou, por exemplo, Clarice, pelos direitos da pessoa. Gestos que inspiram mais ampla cartela de cores.

 

@georgia.alves1

 

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