Nao é isto uma sátira em prosa

Não é isto uma sátira em prosa

Fernando Balduino

 

A comédia carrega consigo anais que, desde o alvorecer dos gêneros, não se cansa de ricamente preencher. Estão neles dispostos mil afetos, e desafetos mil, que, com matiz extraordinário, pintam o grave e o possante com tons risíveis da mesma substância que os compõe – neutralizando-lhes efeitos viperinos que, porventura, alguma víbora histórica eriçou-se a ali colocar. Ora, que tenham sobre o mesmo papel irônico escrito Paulo Gustavo e Aristóteles – não fosse surpresa se, de fontes tão estranhas, bebesse e nutrisse a Comédia, em seus velhos Mistérios? Qual competência, afinal, se deixaria marcar no tão imperial templo dos humores?! – se tais exageros não iludem, que saia então o Ser, risonho por todos os poros, e que se revele pelo que é o riso, fruto da Comédia: senão um asno, pulcro e poderoso! Universal, porquanto asno, é ele montaria que, sê espírito de velho grego e impassível, ou jeitoso carioca e divertido, nele cabe. Não à toa, em sua misteriosa potência, enfraqueceu por sátira antigos régimens; e também Crisipo, o estoico, ele matou.

Assim da poética aristotélica diz-se, pois que tudo é de dizer. Diz-se que continha um tomo sobre a comédia; e assim, tão engenhoso em completeza, convenceu lhe seguirem os antigos, até Molière, os sapientíssimos alvitres todos – em ordeiras tendências de manter a boa ordem social. Pudera, entretanto, operar a per sona segundo seus próprios desatinos, e paixões!, logo se enxergaria os perigos de testas franzidas em hora imprópria: pois que há, é bem verdade, um mal que torna agente o riso vivaz. O Nome da Rosa, eis um exemplo; Temor e Tremor, eis outro. Não por acaso eram os quadros nobres de nobres nobres sérios e inflexíveis – faria, em outras partes, questionável a coroa, o manto, e o pincenê; pois que uma política de riso, não!, torna líquido, fluido aquilo que tão sólido parece. Assim é que, em hora, podemos comparar os adventos aos asnos que, tão potentes, ainda se confundem com idênticos cachos de uva.

Venha então Hamlet, a explicar com graça esta indistinção estética; a segurar canhoto – a caveira do riso. Ele, que mais do que ninguém estudou as estranhas formas com que se apresenta: quem riu do pobre bobo; e depois por ele chorou! Desvendou, com a robustez ambígua de seus fragmentos, aquilo que de melhor nos serviu Machado de Assis – tornando o trágico, cômico; de ponta-revés, torto e outra vez… que se, por um lado, Yorick extraiu de suas serpentes o antídoto às burlescas graças das cortes sérias, também ele – foi a véspera do escarro. “Transfigurai, ó bobo, na mais ácida galhofa que já houve”, e obedecendo, padeceu. O trágico, porquanto grave, e elevado, está sobre o mesmo céu que o cômico, de um modo que, sempiterno, seja o riso também a própria piada; e piada de um Sancho, deveras filósofo.

 

 

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