Blasfêmea

Blasfêmea

Jaque Machado

É preciso que certas coisas sejam verbalizadas, tenho certeza que agora estão se perguntando o quê, mas não é o quê, é como. Essa história é um pouco diferente daquelas que vocês estão acostumados a ler. E não é sobre sexo, não é sobre amor, não é sobre mim. É sobre o cosmos, sobre liberdade. Liberdade ao final de um tapete de cacos que deve ser atravessado descalço. Liberdade abaixo do oceano, na escuridão, respirando água congelante.

Começamos lembrando de tudo aquilo que diz respeito à alma, o corpo e o sentimento. Sentir é o que nos faz interagir com o mundo e não ter medo de despencar na borda do abismo.

Essa história poderia ser breve, mas dizê-la não faria sentido, é por isso que preciso mostrá-la.

Poderia começar dizendo que não sinto nada, mas sinto… raiva, ódio, sem um alvo específico. Eu não odeio nada, nem ninguém. Isso só está aqui. E a despeito dos sentimentos, usando eles, vocês irão julgar. Mas não podem me condenar, isso porque esses dois sentimentos são sentimentos humanos, cabe a cada um de nós escolher quais consideramos imorais, desprezíveis, insuportáveis. Eu sigo com o que tenho.

Se sinto ódio, quer dizer que ainda sinto. Mas nem sempre foi assim, um dia eu não senti nada. O dia mais perigoso de todos.

Mas a história começa antes. Chuta o relógio. Eu tinha 8 e meu médico me disse que meu coração batia acelerado. “inspira e expira com calma”, impaciente, ele fazia o movimento olhando nos meus olhos. Eu só queria rir daquele microfone de ouvido, gelado, no meu peito de esquelético.

“Você é Dr de coração?”, perguntei, ingênua. Nas paredes pôsteres e desenhos de corpos de mulheres adultas. Seios grandes e aquela coisa que parecia um triângulo com alças. “J., presta atenção aqui, precisa respirar fundo e ficar calma.” “Eu tô calma”, pensei, mas ri.

Devo dizer que frequentei um clube de piscina na infância, foi quando aprendi a nadar, antes, me afoguei. Mas não tive medo da água, tão logo parei de tossir, ainda com o nariz ardendo, sentei na borda daquela lagoa de concreto e respirei fundo, olhei por alguns segundos o sol fustigar a vista, a superfície ondulando azul cristalino, depois me joguei.

“J, vai, inspira e expira.”, o Dr. continuava chamando minha atenção… “J., presta atenção aqui, precisa respirar fundo e se acalmar.”

“Mas eu tô (calma)”, pensei, rindo. Ria quando ficava nervosa, a minha mãe fez uma careta, a mesma careta de comporte-se, foi só então que eu prendi o ar tão fundo… Tão fundo naquela hora, que mergulhei numa piscina, meus ouvidos ficaram surdos de água.

Uma piscina funda e estava sozinha, tentei nadar, mas não consegui. Quanto mais remava com meus braços finos e pequenos, mais para baixo calhava, até entrar em uma coluna d’água escura, que fazia mais pressão na minha cabeça e ouvidos. Não parava de descer.

Lá embaixo era gelado. estava com medo dos animais marinhos desconhecidos. Talvez um tubarão me coma. Tateei o corpo, estava quase nua. Meus cabelos boiando acima da cabeça, lá bem no céu da água, uma luz. Minha calcinha de bolinhas roxas flutuando ao redor do quadril. Incrível que naquela situação eu não tivesse medo de morrer afogada, a única coisa que me preocupava era se os monstros do fundo do mar estavam me vendo só de calcinha.

Apertei o olho, pus a mão sobre o púbis para segurá-la. Mas algo me aterrorizou mais do que tudo, mais do que os animais carnívoros e as lulas gigantes ou tubarões das profundezas, mais do que afundar no breu gelado, naquele movimento, eu me toquei. E toda a vergonha do mundo começou a entrar pela minha boca e o que antes era só água, agora, queria me matar, o perigo real e assassino de uma culpa vergonhasa estava me afogando, e senti que iria morrer. A primeira sensação de morte iminente.

Entrei em pânico nas profundezas e tentei subir, mas a luz apagou e meus pés estavam enterrados demais nas areias flutuantes para conseguir sair. O maior mar do mundo. Ele é escuro e solitário e você morre em silêncio.

“J! J! Solta a respiração agora!” (editado)

O médico ficou assustado, meu lábio estava roxo, havia desligado, travado, saído de mim, com as bochechas cheias de ar. Quando ouvi o grito, coloquei aquilo para fora, como se cuspisse a água que estava nos pulmões. Olhei ao redor, e o mundo estava cheio de bolinhas roxas pulsantes.

A minha mãe chorava na cadeira, mas eu não sabia de nada, o corpo da gente esquece das coisas ruins.

Um dia acordei e olhei para o lado, meu coração batendo rápido. Noventa por cento do tempo ofegante. Depois vocês vão entender. Mas o coração rápido cresceu junto com os peitos pequenos e o pelos do corpo e a bunda grande, nunca parou de bater acelerado. As pessoas me dizem isso sempre, que o meu coração bate rápido. “É normal?”, elas perguntam. Gostaria de saber. Engraçado como todo mundo quer respostas…

Chegaram até a me perguntar se eu tinha paz, que precisava me acalmar, que não fazia bem para o espírito. Tanta porcaria que ouvi na vida…. O único efeito foi desligar para o mundo quando começavam a incomodar com sandices.

Eu estava nesse dia em que acordei com o coração rápido, como em todos os outros, mas tinha alguém do meu lado, ele ficou olhando nos olhos com a mão no meu peito, de certo estava achando algo errado também. “Eu sei, bate rápido.”, acendi um cigarro e levantei porque não suporto ficar na cama com gente. Sorri. “Sabe que existe um leopardo na Europa que corre sem alterar os batimentos cardíacos?”, ele disse, claramente sem perceber meu total desinteresse, que só aumentava. Tinha um cara pintando um muro do outro lado da rua e minha fumaça saiu pela janela como o Gandalf fazia com o fumo da quarta sul, em rodas. Nunca tinha conseguido até aquele momento fazer círculos de fumaça. “Você sabia?”, ele insistiu. Poderia ter dito que não há leopardos na Europa, mas só sorri e joguei a calça para ele.

A fumaça continuou saindo pela janela na direção do meu jardim de mato, tinha um passarinho cantando e quase parecia assoviar Another Brick in The Wall. Era domingo, eu lembro, vai ver por isso que o passarinho estava ali tão inocentemente, domingo é um dia tranquilo. Era quase meio dia e o cara ali…. Estava em alas, em nervos, o coração batendo forte, eu havia tido um orgasmo pela manhã. Por mais que meu corpo estivesse pulsando de tesão de novo, só queria que ele fosse embora e nunca mais aparecesse. Acho que meu ar impaciente ficou tão evidente que ele só decidiu ir. Finalmente meu espaço.

Agora não sabia, como um leopardo pode correr numa velocidade tão absurda e fazer o coração ficar calmo? Só podia ser mentira dele! Leopardos correm numa única tentativa de caça, gastam todas as suas energias e sofrem de exaustão depois. Aposto que o coração bate a ponto de fazê-lo arfar, de babar, de jogar-se ao chão, vulnerável.

Quando vi o cara cruzar meu portão, levei a mão ao peito, meu coração ainda estava latejando, cada vez mais rápido.

Era como um orgasmo mesmo, as batidas fazendo barulho dentro do ouvido, uma euforia, adrenalina sendo despejada em doses estúpidas no sangue e no cérebro, a pele arrepiada, como se alguém encostasse em mim pelas costas. E de repente, estava desejando abraçar o tal leopardo rolando na grama fofa, deitar nua no gelo, dançar entre crianças na rua, me jogar como uma pedra do alto de uma cachoeira, afundar em um rio morno, num beijo, sem fim engolir a língua do mundo. É e sempre foi assim, meus dedos e meu corpo sempre desejaram se tocar, e cada vez era uma nova descoberta. Meu clitoris pulsou novamente, meu amor é imenso e estranho. E aquele muro do outro lado da rua, branco, o pincel subindo e descendo, os pássaros cantando, uma música de domingo em família, ao longe. E por mais que não me sentisse confortável com aquele amante aqui, nunca fui desagradável, as pessoas só querem se sentir especiais, e tenho amor de sobra para dar isso a elas. E é sincero, não tem cinismo ou artifício eu só me entrego completamente ao momento, com tudo o que tenho. Mas, elas nunca estão satisfeitas, querem sempre o depois, depois, depois. Amanhã terei uma casa, terei uma profissão, terei dinheiro, terei um circo, amanhã, amanhã, amanhã. Assim elas vão procrastinando seus sonhos e o coração bate calmo, até parar.

Claro, na vida fazemos escolhas. Umas para hoje, com consequências amanhã. Não sou tão utópica assim, entendo que o mundo nos pega pelo pescoço de vez em quando e nos chacoalha.

Foi nessa manhã que decidi que passaria a escolher meus parceiros. Inicialmente me chamavam de dedo podre, olha como isso é horrível: você é culpado por escolher alguém que ocultou ser escroto. Tudo bem, mais uma culpa na sacola. E pode ser que o dia, o mês ou o ano tenha castigado uma pessoa a ponto de forçá-la para longe do seu eixo. Pode ser um milhão de coisas, até culpa minha, de verdade. Ao longo do tempo comecei a entender… Que na verdade era eu que não entendia… Os outros. A forma como se comunicavam não fazia sentido, o problema era eu. Nunca soube flertar, passava sempre a mensagem errada e quando tentava trocar algumas insinuações, deixava as pessoas desconfortáveis.

Resolvi ser mais direta, mas isso acabou afastando uma boa parcela das pessoas, porque elas de fato não querem só sexo, elas querem um filme de hollywood, imaginação, camera, flores, querem que você encene algo para elas se sentirem contempladas, para só então fazer sexo, para só depois gozarem. Isso sim é frio, um teatro… Ainda teremos muito o que falar sobre isso, vocês e eu. A ideia de escolher surgiu junto com o que restava em mim de educação cristã.

Eis dois motivos para começar a escolher os parceiros: o primeiro era que ainda acreditava na história de que deveria selecionar a quem me entregar e que não fosse qualquer um, a segunda e pior, a culpa insuportável de não lembrar os nomes dos parceiros e parceiras. Entendi que deveriam ser poucos, mas não somente um, pois ninguém está preparado para a sina de sexo infinito.

Um dia escrevi uma poesia que dizia que meu mundo era a minha vulva, por ali entrava o mundo e saia a vida, a maneira de me conectar e estar perto das pessoas, de sentí-las verdadeiramente e sem máscaras, só o que elas são. É por isso que só quero observá-las, as pessoas, enquanto estão nuas. É o afeto que entendo possível, não existe nada mais sagrado em mim que possa entregar a elas do que a verdade, a verdade de quem sou enquanto não existe outra coisa senão amor. Minha mãe leu essa poesia e chorou, copiosamente, não quis perguntar o porquê, tive medo, no final lembro de ter escrito algo como “não sou outra senão aquela que sorri e caminha no mundo com pés de gozo e amor”.

Mas a coisa da escolha, nem sempre foi assim tão clara, apesar dos motivos torpes que me levaram a optar, estive em lugares escuros, e desde de muito nova. Eu andei na rua, morei na rua, vaguei na madrugada, preciso contar, quase morri mil vezes de tanto amar, em qualquer lugar, com qualquer um, só pra sentir o coração na boca, esse mesmo coração com uma dúvida angustiante na cabeça, porque tenho certeza que um dos momentos na sua vida em que mais se sentiu vivo, foi quando descobriu que amava alguém. Como pode o amor levar uma pessoa a ter uma atitude tão autodestrutiva? Nunca foi dependência do outro, sempre foi uma busca incansável por sentir e dar.

Tenho certeza que um dos momentos mais impactantes da vida de vocês foi quando disse “eu te amo” ou “estou apaixonado”, até mesmo pode ter ouvido isso em um sexo recorrente e ficou estarrecido. Não fique…

É… Teoricamente o amor te faz sentir vivo. Por que então não podemos entregar esse amor a qualquer um? Por que nos chocamos ao ouvir “eu te amo”? É tão raro assim? Tão indizível assim? Por que existe um abismo entre amar e fazer sexo? Por que amor é uma promessa de entrega eterna? Por que podemos nos entregar em nossos gozos, prazeres, feromônios e dopaminas, mas não podemos nos permitir amar qualquer um naquele momento ou depois? Ou se somos amados, não podemos fazer sexo com qualquer um, pois só deve existir aquele singular parceiro? A minha dúvida pode parecer ingênua para você, mas aqui estamos, arranhando a superfície.

Ninguém está preparado para dar, dar amor, dar a si, mas há os que têm fome e há os que têm fome e não se importam em não saciá-la, desde que brevemente, possam dar o amor imenso que possuem. Que possam abrir a válvula do oceano que que têm dentro, e já não podem suportar em segurar. Um amor puro e brilhante e cheio ternura.

Voltando ao ponto em que andei nas ruas, o fiz sem que ninguém soubesse, me destruindo a troco de nada, me deixei ser usada, violentada, quis apanhar, fazer com que me deixassem doer, cortei meu corpo, tudo porque queria sentir, e não podia oferecer o que tinha. O amor é uma constante complicada, um vetor inescrutável. Uma linha fina e esticada que se você tocar demais, ela arrebenta. Assim, por mais que achem que o amor é a coisa que nos faz humanos, foi justamente o amor, nessa linha rompida, que me fez correr perigos. Buscava o amor e não sentia nada, porque estava proibida de dar o amor… Não sentia porque precisavam estar separados, amor e sexo deveriam estar cortados por um muro se os quisesse em doses altas e com diferentes pessoas, mas se juntos, eu só poderia escolher um eternamente.

Uma vida complicada essa, e eu aqui, falando e falando sem ouvir. Gostaria de ouvi-los.

Eu não me apresentei para vocês e peço desculpas por isso. Meu nome é J. e meu coração bate acelerado. Mas o que ainda não contei é que sou ninfômana.

Engraçado, o corretor sequer reconhece o léxico. Mais engraçado ainda porque essa palavra, ninfômana, designa as mulheres hiperssexuais. Eu prefiro a palavra mais estranha mesmo, hiperssexual parece coisa de super herói do sexo. Tampouco é doença. Essa condição é o que somos, faz parte da nossa maneira de interagir com o mundo. Errado estão os de fora, achando que temos que colocar sapatos de mafiosos e afundar no Tâmisa, onde jogavam as mulheres “bruxas”, as mulheres ninfômanas que foram mortas pela Igreja Católica, como pervertidas do Diabo.

Ao contrário do que muitos pensam, ninfomania também é sobre amor, um monte dele, em doses tão cavalares que destrói sua vida.

Em doses estúpidas de tabu dos outros, que te forçam nas caixinhas, aos poucos de tanto nos cortarmos e nos quebrarmos, ali dentro da caixa nos tornamos penas escombros. Como escombros no deserto, eu diria que meu sexo é como Osimandias, em seus restos de pedra, pés de dez metros devorados pelas areias escaldantes e pedindo depois de milhares e milhares de anos, para que se estarreça com tamanha grandiosidade. As pessoas não estão acostumadas, elas ficam enebriadas por essa lógica que não conseguem desvendar, de como o sexo é tão intenso, como somos intensos, mas a verdade é que fazemos exatamente o que elas deveriam e não fazem, nos entregamos inteiros. Só que com o tempo, isso as devora, cansa, destrói.

Mas para que entendam um pouco de tudo que já contei, preciso voltar lá, antes do mar imenso, na segunda memória. Me dêem a mão e prendam a respiração, nós vamos mergulhar. Mas somente na semana que vem…”

 

@jaquemachadoescritora

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