BATISMO DE SANGUE

Sidney Nascimento

Lino tinha o rosto típico de um ex-gordo. Os vincos profundos nas bochechas indicavam um passado de fartura. A careca e as costeletas eram amplas. A pele era branca com pequenas manchas cor-de-rosa. Era chamado de padre surdo. Não sabiam se ele era surdo de verdade ou se fazia de surdo por conveniência. Tinha 50 e poucos anos, aparentava mais. Não era mais professor, apesar de ser fluente em francês e latim. Ninguém se importava mais com aqueles idiomas no início dos anos 1980. Importavam-se menos ainda com frei Lino e suas antigas convicções ideológicas.

O acesso aos apartamentos dos religiosos ficava ao fim do corredor do térreo. Uma porta de madeira composta por duas folhas de um metro e meio de largura separava o ambiente escolar da residência dos frades. Dois lances de escadas davam acesso à sala de estar de uso comum. Lá havia um aparelho de televisão, um amplo sofá e duas poltronas revestidas de couro. Tudo simples, porém, bem cuidado. Era um ambiente com cara de anos 1960. Ivan tinha acesso em razão de suas habilidades como zagueiro de futebol. Dizia-se um defensor duro e leal. Os adversários questionavam a sua lealdade. Os religiosos, por sua vez, faziam questão da presença dele nas peladas em que enfrentavam padres de outras ordens. Em uma destas visitas viu frei Lino tendo um surto, ele dizia palavras aparentemente sem nexo:

– Eu já contei tudo o que eu sabia. Deixa-me morrer, por favor.

Em prantos, o religioso ajoelhou-se e disse ao seu algoz imaginário.

– Eu vos imploro. Deixa-me morrer, por favor.

Ivan, assustado, chamou o outro religioso que estava na cozinha. Depois que a situação estava sob controle, frei Alberto chamou o garoto para conversar reservadamente.

– Ivan, o que você presenciou fica entre nós, certo?

Ele assentiu com a cabeça. Não conseguia dizer uma palavra depois do que havia presenciado. O religioso coçou o queixo, divagou por alguns instantes e, como se tivesse tido uma ideia brilhante, ponderou:

– Estive pensando com os meus botões. O que acha de conviver mais com frei Lino? Acho que vai ser uma bela oportunidade pra você descobrir sua vocação religiosa.

Ivan há algum tempo se questionava sobre estudar teologia, entretanto, não sabia que vocação religiosa e o estudo da teologia eram opções que não caminhavam necessariamente juntas. Estranhou aquela oferta. Contudo, a possibilidade de descobrir a verdade por trás do padre surdo pareceu-lhe interessante. Seria uma aventura de detetive. De um jeito tímido – ele não tinha outro jeito de se expressar – respondeu:

– Claro.

Pensou em dizer que não tinha nada a perder, mas não foi necessário. Frei Alberto completou a frase para ele.

– Você não tem nada a perder, Ivan. Já frei Lino, tem muito a ganhar.

A companhia de Lino fazia bem a Ivan. A figura soturna daquele religioso fazia o garoto não se sentir esquisito. Ficou combinado que Ivan acompanharia as caminhadas vespertinas do frei pelo pátio reservado aos irmãos dominicanos. Havia um minúsculo bosque naquele átrio, fazendo que todos se sentissem em um mosteiro, apesar do barulho infernal que vinha da quadra da escola durante as aulas de educação física. Durante o primeiro passeio monitorado, Lino perguntou subitamente:

– O que você acha que Deus quer de você?

Aquela pergunta surpreendeu o garoto. A única resposta que encontrou foi dar de ombros ao seu interlocutor. Ainda não havia recobrado o fôlego quando recebeu a segunda pergunta do dia.

– E o que você quer de Deus?

Desta feita ele sabia a resposta. Queria ser escolhido para alguma missão especial. Mas aquela era uma resposta egocêntrica demais para se apresentar. Novamente deu de ombros. Ele costumava reagir em silêncio quando acreditava não ter nada de interessante a acrescentar. Lino era catarinense e tinha um sotaque italiano carregado. Ergueu as mãos como se pedisse uma pausa e disse de maneira confessional.

– Quando eu tinha sua idade, eu acreditava que vocação religiosa era algo que poderia ser descoberto. Como se fosse um problema a ser investigado em uma pesquisa científica. Foi muito tempo depois de minha ordenação que eu percebi que vocação religiosa é uma revelação que se dá quando você perde o controle sobre o processo de descoberta. Fechou o semblante de maneira melancólica sem contar ao garoto o que o destino havia revelado a ele. Parecia querer convencer o pupilo a desistir de qualquer pretensão ao sacerdócio.

Deu meia-volta e se dirigiu ao seu quarto. O frei tinha marcas de suplícios na nuca e na orelha direita. Ivan não se questionou se aquele conjunto de cicatrizes era fruto de mão alheia ou se o religioso havia se punido por alguma falta que ele próprio reputava imperdoável. Acompanhou Lino até o quarto dele, onde havia um tubo de oxigênio. Os boatos diziam que seu pulmão havia sido perfurado no mesmo acidente em que perdera parte da audição. Lino deitou-se na cama e pediu auxílio ao jovem valete para que pudesse fazer uso da máscara de oxigênio. Ele resmungou que a válvula do equipamento vivia dando defeito, mas achava que era melhor deixar como estava. Ivan, então inocente, retrucou que daquele jeito ele iria acabar morrendo. Lino retirou a máscara do rosto e murmurou de maneira irônica:

– Quem te disse que eu já não morri antes?

Ele contou que havia tido uma experiência de morte clínica. Disse que nunca havia se sentido tanto em paz. Mas, para a infelicidade dele havia sido trazido de volta à vida. Frisou a testa demostrando resignação. Ficou em silêncio lembrando-se de seu envolvimento com o movimento de resistência armada à ditadura. Lino, ou melhor, seu alter ego Teixeira, não havia pegado em armas, mas tinha ajudado a esconder guerrilheiros, a levar dinheiro e armas para eles. Havia sido um colaborador da Aliança Libertadora Nacional. Um grupo formado por dissidentes do Partido Comunista que, inspirados na revolução cubana liderada por Fidel Castro, após a realização da I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) em Cuba, resolveu promover uma luta revolucionária em terras tupiniquins. Che Guevara entendia que o dever de todo revolucionário era promover a revolução. Lino desgostava de católicos e revolucionários não praticantes. Se você não pratica, você não é: era o que repetia em seus tempos de juventude. Uma vez havia escutado o relato de uma tese que explicava como era possível conciliar cristianismo e revolução:

“O cristianismo é essencialmente transformador e essa revolução não se limita à história, culmina na transcendência. Jesus anunciou o Reino, a transformação radical deste mundo segundo o projeto libertador do Pai. Onde há justiça, liberdade e amor, aí estão as sementes do Reino de Deus. O cristão, como discípulo do Cristo, não tem outro compromisso senão com o Espírito que nos anima na direção dessa esperança.”

Lino havia se encantado com aquela tese libertária que, segundo seu entendimento daquela época, transcendia o marxismo. Uma tese que não via o homem apenas como um elemento da cadeia produtiva. Muitos jovens imaginaram que seriam capazes de enfrentar os demônios por uma causa justa. Estavam dispostos a sacrificar a própria vida em prol do nascimento de uma nova sociedade. Contudo, seus algozes torturadores não tinham em mente mandá-los ao paraíso. A tortura para ser eficiente precisa manter a vítima viva. Mortos não se subordinam aos vivos. Os torturadores sabiam desta premissa sádica. A alternativa para se fugir das sessões de tortura era praticar a delação voluntária. O delator voluntário, aquele que cedia informações antes da submissão ao sofrimento físico, era segregado imediatamente pelos camaradas de esquerda. Era um pária. Para alguém que havia se ordenado em uma igreja que adorava os mártires, aquilo era a pior degradação a que alguém poderia se submeter. Delatar um irmão dominicano equivaleria a tornar-se um Judas. Lino não queria dividir aquelas angústias com alguém tão jovem. Duvidava de sua sanidade mental, mas não havia perdido a bondade. Simulou um sorriso e liberou Ivan da vigília.

No dia seguinte, enquanto jogava bola, Ivan ouviu com satisfação os aplausos de seu tutor. O humor de Lino variava entre a depressão e a euforia. Ao final da partida, o frei desceu com dificuldades os degraus da arquibancada do ginásio escolar. Tinha o cacoete de olhar para trás para verificar se estava sendo seguido. Quem já foi encarcerado não teme a eternidade, o temor reside no próximo minuto. O método de inquisição dos torturadores consistia em um ciclo de castigos físicos, perguntas e ameaças. A expectativa do próximo castigo torna-se o maior suplício do torturado. A mente de Lino vivia a expectativa da próxima sessão de tortura, apesar de não estar mais nas mãos de seus verdugos, ele realmente acreditava que os algozes viriam o perseguiriam novamente. Havia motivos para temor, o regime militar, apesar de decadente, ainda estava no poder. Frei Lino não era o único paranóico naquela escola. Os irmãos religiosos tinham motivos para deixarem os alunos acreditarem no boato do acidente automobilístico. Ivan não havia desvendado o passado revolucionário daquele religioso marxista, mas sabia o suficiente para concluir que o seu tutor não aguentava mais permanecer vivo. Não era uma conclusão intelectual fruto de uma observação cuidadosa do comportamento e palavras do tutor. Ivan havia acreditado ter experimentado uma epifania. Deus havia reservado uma missão especial para ele, finalmente. Na semana seguinte, frei Alberto fez um pedido especial para Ivan. Todos os religiosos estariam ausentes da escola em razão de uma reunião na capital. Por tal motivo, a vigília a Lino deveria ser redobrada. O rapaz recebeu o número de um telefone de atendimento médico emergencial, caso fosse preciso. Nos dias de hoje, atribuir uma responsabilidade assim a um adolescente pareceria absurdo, mas naqueles tempos pareceu normal. Tutor e pupilo assistem ao futebol na televisão. Lino parece escutar passos na escada que dá acesso à residência dos religiosos. O frei sofre um ataque de pânico, porém, não demonstra querer ser ajudado. Ivan ameaça usar o telefone para pedir auxílio, mas percebe o olhar reprovador do tutor. Eles se olham com cumplicidade e Ivan descobre que nem toda forma de amar é doce. Após uma pequena convulsão, Lino morre pela segunda vez e de maneira definitiva.

@sidneynascimento.advogado