Yin e yang

Flávio Ricardo Vassoler

Como é ser a esperança, que projeta a semente e planta o sonho?

que asperge o pólen e arranca raízes?

Como é ser a nuvem,

que voa e não aterrissa?

Como é ser a água,

que sacia e não tem sede,

que inunda e não se afoga?

Como é ser a chuva,

que irriga a semente e alaga o bebê?

Como é ser o mar,

que abriga o tubarão e desterra o náufrago?

Como é ser a concha,

que é pequenina e canta como o mar?

Como é ser a pedra,

que não tem vida e sobrevive à morte?

Como é ser o cume,

que amplia a visão e exila o abraço?

Como é ser o fogo,

que assa o pão e incinera a partilha?

Como é ser a árvore,

que gera energia e não pode sonhar?

Como é ser a ponte,

que põe um pé em cada mundo e só existe de passagem?

Como é ser a cerca,

que delimita o privilégio e não sente culpa?

Como é ser a parede,

que abriga e não mora?

Como é ser a chave,

que penetra na fechadura e tem ciúme da maçaneta?

Como é ser a cortina,

que fechada está aberta e aberta está fechada?

Como é ser a cama,

que é palco e não atua,

que é arena e não luta,

que dorme e não deita,

que deita e não dorme?

Como é ser o poço,

que tem água e não tem sede?

Como é ser a coroa,

que reina e não governa?

Como é ser a bandeira,

que une a nação e tremula com o vento apátrida?

Como é ser o nó,

que precisa ser desfeito e desfeito já não é um nó?

Como é ser o olho,

que vê e não toca?

Como é ser a mão,

que toca e não vê?

Como é ser a unha,

que cresce e não tem planos?

Como é ser o paradoxo,

que existe como nó e inexiste como corda?

Como é ser a pergunta,

que tateia e hesita,

que hesita e duvida,

que duvida e formula,

que formula e indaga,

que indaga e afronta,

que afronta e amplia,

que amplia e acua,

que recua e teme,

que hesita e tateia?

Como é ser a resposta,

que tateia e hesita,

que hesita e formula,

que formula e descobre,

que descobre e ousa,

que ousa e revela,

que revela e afronta,

que afronta e disputa,

que disputa e acua,

que recua e teme,

que hesita e tateia?

Como é ser o desejo,

que tem sede e não tem boca?

Como é ser o ódio,

que quer matar o inimigo e precisa dele vivo?

Como é ser o passado,

que poderia ter sido e não foi,

que foi e não volta,

que volta e dói?

Como é ser a memória,

que tropeça e se lembra,

que encontra e perde,

que culpa e engana,

que se encontra e perde,

que se culpa e engana,

que encontra e se perde,

que culpa e se engana,

que se encontra e se perde,

que se culpa e se engana,

que se lembra e tropeça?

Como é ser a mentira,

que humilha a confiança e pode vendar a dor?

Como é ser a verdade,

que pode ter razão e pode não ter compaixão,

que pode não ter razão e pode ter compaixão?

Como é ser o presente,

que é e já não é,

que é e pulsa,

que pulsa e é mais,

que é mais e já não é,

que é e frustra,

que frustra e continua sendo?

Como é ser a vida,

que tem vida e não vive por si só?

Como é ser a morte,

que mata e nunca viveu?

Como é ser o nada,

que enuncia o vácuo e tem quatro letras,

que prenuncia o vácuo e tem uma lápide?

Como é ser a esperança,

que projeta a semente e planta o sonho?

Como é ser o futuro,

que ainda não é e será,

que ainda não é e não será,

que ainda não é e não mais será,

que ainda não é e não mais… será?

Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (Brasil), com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor das obras O evangelho segundo talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014), Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019) e Metamorfoses, os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai (Nômade, fiel como os pássaros migratórios, 2021). É colunista do site Brasil 247, para o qual escreve ficções, semanalmente, sobre sua experiência nômade no continente europeu. Colabora para os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, bem como para as revistas Veja, Carta Capital e Piauí. Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler

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