PELADOS NO GALINHEIRO

PELADOS NO GALINHEIRO.

Antonio Pimentel

Dona Pequitita. O apelido apagou o nome de batismo. Uma senhora negra, baixinha e atarracada. Miúda e forte. Foi nossa vizinha. Ela, marido e filhos: dois jovens e três crianças. O marido era pouco notado. Trabalhava e ficava quieto. Dona Pequitita comandava a casa, transitava pelo bairro e, esporadicamente, estabelecia contatos com minha mãe e minha vó. Eventos rápidos. Vizinhança sem intimidades.

O que me fez lembrar dessa família perdida no tempo? A crueldade, esse absurdo sentimento de prazer diante da dor alheia. Dona Pequitita, sem piedade e convicta, aplicava corretivos severos contra os filhos menores. Batia com cinto, vara, o que estivesse ao alcance no momento de fúria. Surras violentas. Ouvíamos a gritaria. Lembro-me disso com tristeza e indignação.

Além das surras, era comum Dona Pequitita tirar as roupas dos filhos e prendê-los no galinheiro. Três garotos nus, misturados com as galinhas. A cerca do galinheiro fazia divisa com nosso quintal e a gente corria para ver os pelados. Ver, rir, zombar. Constrangidos, eles tentavam se proteger dos olhares e deboches. A crueldade da mãe era agravada pela nossa. Um dos filhos, o Gilson, no começo da adolescência e resistente ao castigo, era acorrentado sem roupas ao mourão que sustentava a cobertura do fogão a lenha.

Como uma mãe chega à prática rotineira de castigos cruéis e degradantes? Como a vizinhança convive com isso, sem denunciar e exigir providências? Que prazer é esse de impor aos filhos tratamentos humilhantes? Afirmo opiniões e arrisco abordagens.

Dona Pequitita era fruto de um aprendizado perverso. Certamente foi objeto das mesmas práticas, tidas e aceitas como educativas. “É de pequenino que se torce o pepino”. Torcer, moldar, corrigir, endireitar. A força e a violência eram (são) usadas com esse objetivo correcional. Pais tinham autorização tácita e até expressa para corrigir os filhos do jeito que achassem melhor. Não têm mais! A lei brasileira proíbe e pune esses atos de violência, crueldade e opressão.

A vizinhança virava (vira) os olhos para outro lado. “Em briga de marido e mulher, melhor não meter a colher”. Essa regra de omissão e conivência vigorou (vigora) também quando o assunto era (é) a educação de filhos. Cada um corrige seus filhos como acha melhor. Certo? Errado! Um erro histórico, muito comum, fonte de absurdos. Hoje, vizinhos, educadores, médicos e todos têm a obrigação de denunciar tratamentos violentos, vexatórios e degradantes contra crianças, adolescentes e jovens. É lei. É civilização. É humanidade.

Na prática corretiva, junto com a violência, há prazer, satisfação com o castigo imposto. Que diabo é isso?! Não tenho elementos para avançar nessa abordagem. A psicologia deve ter explicações mais completas. Arrisco. O que vigora é o prazer do exercício do poder, fonte de gozo para muitos, mesmo com seu uso torto e descabido. Outro prazer é o do dever cumprido. Se a pessoa acolhe a violência como método educativo e se sente pai ou mãe responsável, fica satisfeita e em paz com seu autoritarismo. Está cumprindo um dever. Não é omissa. Seus filhos vão reconhecer isso no futuro. Será?

Avalio que a origem de tanta crueldade está em duas marcas da nossa história: a escravidão e o catolicismo.

Senhores e escravos aprenderam o uso da violência para subjugar e corrigir pessoas. O senhor aprendeu violentando. O escravo, violentado. Foi dessa relação desigual e cruenta que veio nossa herança de absurdos no tratamento corretivo de crianças, adolescentes e jovens. As ações para “quebrar o mau gênio” ou “baixar a crista” do escravo exigiram práticas de força e submissão, maneiras de agir que colaram em nossa sociedade. A escravidão acabou, mas muitos dos seus métodos sobreviveram entre nós, inclusive na educação familiar e escolar. São presentes também na nossa segurança pública.

A Igreja Católica, com sua perspectiva de salvar o indivíduo purgando pecados com penitências, algumas sacrificantes e dolorosas, também carregou água para o moinho dos castigos corporais e da imposição de dor ao outro. Os sacrifícios (jejuns, autoflagelos, orações longas e em posições de desconforto, mortificações) são marcas fortes na nossa formação. Dor e salvação, uma dualidade orientadora da aplicação de castigos “pedagógicos”. Subjugação e aprendizagem, um equívoco “pedagógico” sem remissão. Não é preciso sofrer para aprender.

O mundo muda. Hoje, as leis brasileiras garantem os direitos humanos e fundamentais de crianças, adolescentes e jovens. Existem portas para a exigibilidade desses direitos. Estamos avançando. É preciso mudar mais e com mais velocidade. É preciso acabar de vez com qualquer resquício da prática corretiva na educação e em todos os lugares. Dona Pequitita ainda vive em muitos lares.

@antoniopimentelbh

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