O Riso entre o cinismo e a ironia

Foto: créditos, Many Ray Trust, ADAGP, Paris and DACS, London 2015

 

O Riso entre o cinismo e a ironia

Gabriel Von Gerhardt

A risada é um fenômeno especificamente humano, uma prevalência da cultura em relação à natureza, o contrário da morte. No riso há um dispêndio de libido que escapa da tirania do superego, produzindo uma satisfação transitória. Essa energia canalizada tem a potência de permutar a posição de um sujeito em relação ao seu sintoma, por exemplo, promovendo a elaboração de seu sofrimento. Contudo, mesmo considerando todo o poder disruptivo do riso, é inegável que, na modernidade, seus efeitos são ambivalentes.

Pode haver um humor resignado, pueril, que se articula dentro de estruturas vazias, tanto quanto um humor insubmisso, contestador, resistente. Analisemos como cada um se manifesta em nossa cultura.

Com o recrudescimento promovido no circuito de afetos dentro do capitalismo, a imaginação política foi colonizada por categorias estanques, que neutralizam os ímpetos desestabilizadores do humor e deixam um resíduo simbólico conhecido como cinismo. O cinismo representa o esgotamento da crítica, ele zomba da conjuntura atual sem romper com seus pressupostos, é um humor previsto, autorizado, dócil e autodepreciativo. Essa última característica já cancela de partida todo engajamento possível dessa categoria, haja vista seu desengajamento consigo própria. É uma forma muito astuciosa que o sistema predatório atual encontrou de rir de si mesmo, criando uma espécie de metamoralidade que adia incessantemente sua superação. Dessa forma ele assimila sarcasticamente todas as suas falhas, mas assume que não há alternativa, como disse uma vez Margareth Thatcher.

A ironia, por outro lado, delineia de forma cáustica todas as lacunas do sistema, ela é aquela que declara “todos os reis estão nus”, assumindo a ausência de legitimidade dos circuitos consagrados, o lugar vazio do poder soberano, ela vira do avesso as disposições vigentes. É aquele humor que transfigura o lugar comum, pulveriza a solidez ilusória, rasga o tecido das normas e abre espaço para a emergência do novo. Um exemplo disso foi a peripécia de Marcel Duchamp, nos anos 20, ao colocar um mictório no meio de um museu e o denominar como fonte. Foi uma atitude escandalosa, provocativa mas que dentro de sua ironia almejava pavimentar novos caminhos para a arte, considerando a monotonia das obras no contexto das guerras, quando as pessoas estavam sobrecarregadas de realidade. Duchamp teve um vislumbre de como mobilizar a atenção das pessoas, deslocando o estatuto da obra, já que a realidade estava inebriando as pessoas, por que não levar um pedaço dela pra dentro dos museus?

Seguindo esses apontamentos, dá pra entender com mais clareza, que o humor do lado dos dominadores não é humor, é cinismo, pois é muito difícil contradizer um sistema que te beneficia. Por isso todo tirano tem seu coro pessoal de cínicos (isso quando o próprio tirano não é um cínico), enquanto persegue sistematicamente os irônicos que desafiam sua soberania.

Portanto, cabe incentivar a opinião pública à aderir ao riso disruptivo. Fomentar consciência política e social pra maioria da população que é espoliada por um sistema que não diz respeito aos seus desejos autênticos, pelo contrário, cria uma prótese nefasta de subjetividade limitada à produção e ao consumo. Isto só pode se efetuar na medida em que houver uma ampliação das gramáticas de reconhecimento, promovendo uma abertura pra novas maneiras de se afirmar no mundo. Fabricar um novo repertório para o circuito de afetos na nossa sociedade, acabar com a primazia do medo em nome da perpetuação de afetos mais potentes como a insubmissão, o desamparo, a constância, o ímpeto. Tudo pode começar na forma de uma gargalhada laboriosa ou de um choro agoniado, mas como disse Machado de Assis no seu Quincas Borba, as estrelas estão assaz distantes pra discernir entre manifestações de alegria ou de lamúria.

 

@gabriel.gerhardt22

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2 comentários sobre “O Riso entre o cinismo e a ironia

  1. Ótimo texto! Agora cabe a nós encontrar um maneira de fugir do cinismo para ironizar esse sistema necrótico que aboliu a potência em prol do produto.
    LIBERTEM OS NOSSOS CORPOS

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