O Calango

Xilogravura de Marcelo Soares Alves

 

Por Valdi Craveiro Bezerra

BSB, setembro de 2018

O Calango

Aquele era um caminho mágico. Havia promessas de brincadeiras dependuradas a cada galho do caminho que ia dar na casa grande, toda avarandada, bem no meio do Terreno do Vô Bonitinho Craveiro.

O cheiro de terra molhada, aquela terra amarela que dava vontade de saber o gosto, e as gotas de chuva, agarrando-se nas folhas dos coqueiros anões que margeavam à direita do caminho, fofocavam sobre uma chuva que eu não tinha visto acontecer, masmolhara a terra só para a gente brincar.

Meu pai com sua calça bege engomada de barra dobrada, meias brancas, sapato branco com bico e calcanhar pretos, com um cinto marrom sem amarrotar sua camisa de linho branco de punho por dentro da calça, com o cabelo reluzente a brilhantina Atkinsons, cheirando a pós-barba Bozzano, caminha tranquilo segurando minha irmã e meu irmão em cada mão. Acredito nisso por uma questão de lógica, mas não lembro de nenhum deles nesse meu caminho mágico.

Aos pulos, contidos por minha mãe, a única pessoa daquele grupo a me compreender sem me entender obrigatoriamente, eu andava ao seu lado garbosamente puxando meu caminhão vermelho que tinha acabado de ganhar de Papai Noel. Naquelemomento, eu me sentia tão importante quanto meu pai.

De repente, lá longe, meu ídolo durante toda a minha vida, fechou os punhos, apertou seu olhar em lágrimas e correu bufando para cima de mim querendo tomar o caminhão que Papai Noel me deu por bom comportamento durante o ano (coisa que de fato nunca entendi quais eram seus critérios, mas aproveitava sua confusão e aceitava de bom grado os presentes). Se não fosse a interferência de meus pais eu estaria aniquilado, pois apesar de ser apenas dois anos mais velho, ele era bem mais forte que eu. Naquele momento eu vivi um grande tormento. Um furacão de sentimentos e emoções me arrebatou. Meu maior amigo e grande protetor, a pessoa que não tinha certo ou errado para mim e nem eu para ele, ameaçava tomar meu caminhão na porrada. Mas, assim como toda tragédia que não tem a permissão dos deuses para acontecer, como na última hora que apareceu a mão de Jeová impedindo que Abraão sacrificasse seu amado filho Isaque, do nada surge o nêgo Fernando esbaforido, com um caminhão azul, que por burrice ou gozação, Papai Noel nos deu caminhões iguais, apenas de cores diferentes. De repente a raiva se fez em enorme alegria, pois cada um tinha seu caminhão, e como Abraão, nenhum dos dois perdeu seu Isaque.

Enroscando seu braço no meu pescoço, ainda atônito, limpando lágrimas como se fossem do nariz, ele me deu uma gravata de amigos e saiu me arrastando para longe de meus pais, como que me resgatando do mundo dos adultos e me levando para o nosso mundo encantado, mundo das crianças.

Este era meu tio “Branquim”, e eu era o seu sobrinho, e esta foi a hierarquia mais democrática e amorosa que vivi em toda minha vida até o dia em que ele me deixou sozinho nesse mundo. Nós tínhamos um segredo tão segredoso que não ousávamos expressar. Era um pacto de vida. Vidas ainda curtas e pequenas, sem grandes reflexões, mas que apesar disso, sabíamos na dor o que deveria ser feito: Eu o protegia na família, por ser “o errado”, e ele me protegia no mundo, por ser “o tímido”, e o nêgo Fernando protegia e cuidava dos dois, e isso nos alegrava. No silêncio, onde vivem os segredos, sorríamos com os olhos comemorando nossa cumplicidade, mas durava pouco, pois o nêgo Fernando nunca conseguia segurar até o fim, e irrompia em uma gargalhada gostosa que parecia feita de pipoca com caramelo, que estourava levantando a tampa da panela espalhando para todo lado em festa, fazendo todos riem sem parar. Era uma gargalhada que lavava a tristeza de dentro de nós e caíamos na gargalhada com as almas limpas, sempre atraindo os olhares dos adultos desconfiados de algo errado acontecendo.

Fernando vivia inventando brincadeiras para nós. Naquela época a gente brincava, e brincar era experimentar várias vidas diferentes. Saboreávamos tantas vidas sendo bons ou maus, heróis ou bandidos, até virávamos bichos testando nossa humanidade. Fernando nos apresentava o mundo que cabia no terreno do Vô Bonitinho. Nos levava por entre as veredas do terreno nos tirando da proteção limitante dos adultos, dos não pode isso, não pode aquilo. Ele tinha toda a confiança dos adultos para cuidar de nós, pois era cria da casa por duas gerações.

Ele já falava em “mulher dama”, o que eu não entendi a qualificação por muito tempo. A cada lição a gente se entreolhava e sorria assentindo o que ele dizia. Sem dúvida era verdade verdadeira, porque ele não só falava, ele mostrava: isso é cansanção e nunca limpem a bunda com essa folha; mastruz é bom para pé desmentido; essa planta os maloqueiros fumam antes de roubar galinhas; nunca mijem em cima de brasa que dá febre e nem podem comer melancia quente de tardinha na lagoinha que dá sezão; capote quando canta depois das dez horas é porque tem ninho perto. Não dá para explicar a importância desses ensinamentos em minha existência, nem a melodia de sua gargalhada ou de seu assovio que me acompanha até hoje. Naquela época, os amigos se identificavam e se comunicavam por um assovio comum à todos. Geralmente o assovio do líder, cuja escolha não era opção, era o óbvio. A admiração, o respeito e o sentimento de ser uma pessoa que se importava por você, era o bastante para segui-lo por mundos desconhecidos.

Quando ficamos longe dos olhos dos adultos, Fernando nos deu o maior presente que podíamos imaginar: duas baladeiras com cabo de marmeleiro com forquilha em “Y” para nosso tamanho. Era grande a excitação em fazer os batoques com pedaços de tijolos, supervisionado por nosso herói, que de vez em quando tinha que mandar a gente baixar a voz. O tempo do almoço e da sobremesa, que chamávamos de “uma coisinha boa”, passaram voando, pois o campo de batalha nos esperava. Era um monte de tijolos onde os calangos viviam, corriam, procriavam e se escondiam, e o mais importante: estava detrás do pé de tamarino, onde ninguém poderia nos ver, a não ser o safado do macaco prego que vivia atrás do papagaio.

Tomamos posição e começamos atirar. Os calangos corriam, balançavam suas cabeças, como que rindo da gente, estancavam de repente e nos olhavam, corriam novamente e não parávamos de atirar animados pelas gargalhadas do nêgo Fernando que ficava irradiando feito futebol: Olha o carambolo invadindo a área. Parou, olhou e balançou a cabeça. Olha o teço! Ele volta correndo e se esconde mas deixa a cabeça de fora. Vejam meus senhores, ele está rindo! Agora aparece o ciribôlo, irmão do carambôlo. Correu, fez que parava e continuou. Olhou, desafiou, teco, teco, teco. Driblou o batoque e saiu correndo varrendo com o rabo a grande área. Parece que saiu sorrindo……Espera aí! ……. Não é que vai voltar!!!!

Quando de repente, em vez de “gol“, Fernando gritou: “matou!”

Silêncio! Tudo parou. O tempo parou! O vento parou. Meu pensamento parou.

Minha boca ficou dormente, o ar não enchia mais os pulmões, as mãos tremiam, a barriga esfriou e a tontura ameaçou uma queda, uma vertigem. Na época, chamávamos isso de “ter uma agonia”. Meu constrangimento fui salvo pela euforia de meu tio Branquim, que me sacudiu percebendo minha aflição, comemorando o assassinato do calango. Não sei como, mas me recuperei do desmaio. No entanto, a comemoração não durou muito, pois já que o calango tinha morrido mesmo, começamos a discussão sobre quem teria dado o tiro certeiro, aquele que exterminou o pobre réptil.

Cada um tinha a certeza de ser o autor do tiro, simplesmente porque tinha visto acertar o calango. Para acabar com a discussão sem tomar partido, Fernando avisou que minha avó, a mãe de meu tio, estava chamando para tomar banho e jantar. Eram cinco horas da tarde. Naquela época havia hora para tudo, menos para nossa discussão que estendeu-se de forma disfarçada até a hora de dormir. Mesmo calados durante a janta, nossos olhares eram de reivindicações: “Fui eu,… não foi”, “Fui eu,… não foi”.

Seis e meia da noite. Hora das crianças dormirem, de minha avó rezar seu terço e dos homens ouvirem “O Seu Repórter Esso“. Eu me deito com meu pijama em minha rede de frente a meu tio branquim, que se deita de chambre igual a minha avó: uma camisola feito vestido de mulher, coisa que nunca entendi nem nunca comentei com ninguém . Não importavam os trajes, o mais importante eram as argumentações para ser o autor do tiro fatal. Quando a discussão ficava acalorada, minha avó interrompia seu terço fazendo “psíl”, pedindo silêncio do quarto ao lado de meia parede. A certeza inabalável de cada um como autor do tiro decisivo inflamava cada vez mais nosso tom de voz, até que minha avó não aguentando aquela luta de poder, falou do outro lado: parem com essa discussão, senão a alma do calango vem à noite puxar a perna de quem fez essa maldade com ele.

Fez-se novo silêncio, um silencio gelado, sombrio, tenebroso e tão comprido quanto nossa discussão. De repente, meu tio quebra aquele impasse surdo e fala:

– Meu sobrinho, como você é bom de tiro!

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13 comentários sobre “O Calango

  1. Caro colega, sensacional seu conto, muito rico em detalhes e sentimentos. Uma narrativa saborosa de ler. Você conseguiu me transportar para os acontecimentos descritos.
    Parabéns Valdi.

  2. Hahahaha! Que maravilha! E que figura, esse teu tio de chambre. Li teu texto ouvindo tua voz com teu sotaque gostoso, meu amigo. Que delícia.

    • Estou lisongeado com suas observações e sei que posso esperar sugestões objetivas e amigas, daquelas que fazem a gente crescer. 😊

  3. Lendo a sua história, me peguei várias vezes revivendo as minhas… lembranças enevoadas. Li ‘suas aventuras’ rindo!! Bom demais.

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