Nó no peito do pé

Nó no peito do pé

Jaque Machado

Meu pai costumava dar um nó no meu cadarço. É pra não sair. Bem firme, não saía. Eu corria com os pés para dentro, os joelhos sempre ralados. As perninhas tortas roçando no quadro da bicicleta. Pulava corda. O nó ali. Não saía por nada! Pega-pega, capim, areia, barro, ponta de garfo e de bic, não desmanchava. Lembro do som do cadarço deslizando com força enquanto roçava uma ponta na outra, terminava naquele nó. Confesso que, de tanto em tanto, corria e olhava os pés na esperança que estivesse desatado, mas não. Aprendi a dar o laço muito tempo depois, os colegas cruzavam as amarras, colocavam canudinho cortado para colorir, vira e mexe inventavam uma nova moda para tramar. Várias cores: o verde limão, o rosa neon. Acabou que aquele nó ficou lá, anos e anos, só enfiava o pé e saía.

Meu pai morreu quando eu tinha 21.

Aos 24 eu tive uma filha. Não no primeiro e nem no segundo ano dela, mas no terceiro usamos as duas um tênis igual, modinha. E a primeira coisa que fiz quando olhei aquele pezinho todo vulnerável no calçado vermelho foi amarrar um nó. Uma merda de um nó! Tive um estalo, a mente retrocedeu vinte anos até chegar no dia em que estava sentada na mesa e aquele nó no definitivo no cadarço verde. “Não vai sair, não vai cair”.

 

Automaticamente repeti: “assim não vai sair”. Minha guria olhou decepcionada, a expressão triste: “não tinha um laço mais feio? Mais preso?”. O primeiro tênis de cadarço dela e fiz aquele nó. E sentido isso soube daquilo, do nó no peito de vê-la cair e ralar o joelho e estar longe de casa e não saber amarrar o calçado e se cair e machucar e se rirem que não sabe amarrar e se e se e se. Puxei pelo braço, arranquei com tudo o nó. Enrolei e enfiei para dentro, ela riu: “que maneiro!”.

“Quer atar?”, não quis.

Deu dois passos e tudo saltou para fora, veio correndo e disse “mãe, amarra pra mim?”. “Como filha?”, “um laço normal, mãe. Só isso.”. Daí entendi, ela deveria voltar, de novo e de novo, até aprender a amarrar sozinha, voltar às vezes com o joelho ralado, o pé todo suado, o cadarço imundo. Eu só deveria fazer o nó toda vez. Consegui respirar um ar trancado, vinte anos de nó. De nó no peito.

 

@jaquemachadoescritora

 

 

 

Jaque Machado é rio-grandina, mãe, advogada feminista e de esquerda, revisora e tradutora de jogos, autora de fantasia sombria, ficção e prosa poética. Sua poética brota na cozinha, onde ela se perde e se acha, com mimos aos gatos, às crianças, um manto confortável de plantas e cafés com pimenta.

 

 

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