NO LEITO DE MORTE: O JUSTO, O PECADOR E O ALFERES TIRADENTES.

NO LEITO DE MORTE: O JUSTO, O PECADOR E O ALFERES TIRADENTES.

Antônio Pimentel

O Museu da Inconfidência, em Ouro Preto/MG, guarda importante acervo de obras dos séculos XVIII e XIX, peças que retratam a vida e a cultura no período colonial e mostram vestígios da constituição social do religioso e do profano. Quadros, mobílias, utensílios domésticos e profissionais, peças de vestuários, documentos, armas e muito mais. O imponente prédio, construído na Praça Tiradentes, era sede da Câmara da Capitania. Depois foi transformado em prisão. Hoje, abriga o museu, que merece uma visita.

Já estive lá algumas vezes. Guardo recordações. Em especial, carrego a lembrança de duas pinturas: “A Morte do Justo” e “A Morte do Pecador”, cada uma representando um homem e sua circunstância no derradeiro momento. Creio que as obras não têm autoria identificada. Não me lembro. Mas elas são importantes para a compreensão de uma época e reveladoras da forte presença da igreja na sociedade colonial, e até hoje.

O justo, no seu leito de agonia, é retratado com expressão suave e jeito resignado. Vai morrer, está entregue, mas vai em paz. Um lençol claro cobre seu corpo. Ele segura um crucifixo, símbolo do sacrifício de Jesus, de fé e apego a Deus. Um padre lhe dá a extrema-unção. Autoridades religiosas, santos e anjos, atentos e misericordiosos, cercam seu leito. No chão, ao lado da cama, está a figura do demônio: caído, mãos na cabeça, rosto enfiado na escuridão, ele é a imagem da derrota e do desespero. Perdeu, Satã, perdeu! No alto do quadro, o céu se abre, nuvens se afastam e luzes iluminam o caminho celestial. Querubins e serafins estão a postos para receber e guiar a boa alma.

O pecador, também agonizante, vive situação diferente. Seu corpo é coberto por um lençol tomado por labaredas. Com o rosto voltado para o lado, ele parece recusar o crucifixo. A luz da cena é fraca. O ambiente, encardido. O céu está escuro. Num ponto claro, Deus observa a cena. Há um único padre presente, resguardado por um anjo desolado. O padre segura a cruz e tenta conseguir a adesão do pecador, numa última penitência. Peleja sem valia. À espreita, alguns demônios cercam a cama do moribundo. Rebelados contra Deus, espíritos malignos, essas satânicas criaturas vivem à cata de pecadores renitentes. Vão arrastar o infiel para as trevas. Batalha ganha. É nóis! Melhor: são eles. Vade retro!

Gosto das duas pinturas. Elas expressam o dualismo e o maniqueísmo que dominam nossa sociedade, desde os primórdios da colonização. Temos o vício social de olhar e classificar tudo a partir de dois princípios básicos, dessemelhantes e antagônicos. Dividimos o mundo em forças e poderes opostos e incompatíveis. O bom e o mau. O certo e o errado. O puro e o impuro. O elevado e o defenestrado. Com essa prática, perdemos nuances, diversidades, pontes, diálogos e caminhos. Ficamos ilhados e aferrados. Criamos campos de segurança e conforto. Parece bom, mas é prisão e atoleiro. É fonte certa de preconceitos, apartamentos e interdições sociais.

Outra lembrança que destaco na visita ao Museu da Inconfidência está no salão do mobiliário: uma das camas mais vistosas. Conduzindo visitantes distraídos, o guia aponta para a mobília e diz, com seriedade e consternação: “Esta é a cama onde Tiradentes morreu.” Algumas pessoas ficam desoladas diante da cama. Tiram fotos. Observam com pesar o leito de morte do alferes. Momento de tristeza e reflexão. Gente compungida. Uma emoção que pode durar o resto da visita, revelando o respeito que as pessoas têm por Tiradentes e o esquecimento de sua hora derradeira. Em outro salão, mais adiante, o guia revela a brincadeira: mostra peças de madeira do patíbulo onde Tiradentes morreu enforcado, longe de qualquer cama. Risos, alguns amarelos, e descontração.

Volto aos quadros do justo, que deveria ser “o puro”, e do pecador. Revelo que gosto mais e me divirto com a situação do pecador. Acho graça na representação daquele que não abraçou a doutrina católica e vai cair nos braços da capetada. Creio que isso é marca geracional: ser, teimosamente, do contra; ser, poeticamente, gauche na vida. Já transitei com mais força por esse extremo. Hoje, busco o caminho do meio ou pontes entre as margens do rio. Certamente, o justo e o pecador, eternizados nos quadros, não eram tão absolutos em suas virtudes e pecados, forças e fragilidades. Eram dois imperfeitos. Somos.

@antoniopimentelbh

04/06/23

*As duas fotos que ilustram esta crônica não são, necessariamente, reproduções das pinturas do Museu da Inconfidência.

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