Morangos Silvestres

Morangos Silvestres

Pedro Albuquerque

Sem dúvidas, Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, pode ser equiparado, em questão de extensão representativa, a grandes obras, não só cinematográficas, como de todos os âmbitos concebíveis da arte que marcaram o agitado século XX – aos exemplos literários de “O Processo”, de Franz Kafka; “Por Quem os Sinos Dobram”, de Ernest Hemingway e “O Estrangeiro”, de Camus – e enraizaram suas mensagens de modo a influenciar tematicamente e formalmente – em grande medida – as gerações vindouras.

Morangos Silvestres é vitalizada por um enredo e uma trama relativamente abrangentes: acompanhamos a viagem do solitário médico ancião Isak Borg, de Estocolmo, cidade onde reside, em direção à Lund, cidade localizada no sul da Suécia. Borg foi convidado pela Cátedra da Universidade de Lund, onde lecionou, para receber uma condecoração por suas pesquisas e méritos científicos. Borg decide fazer o trajeto de carro e, acompanhado por sua bela nora Marianne, inicia a peregrinação em direção ao sul. Durante a viagem, Borg é acometido por sonhos, devaneios e recordações de seu passado remoto. Através de tais devaneios, percebemos que Isak, em sua juventude, foi um homem mesquinho e alheio às questões que diziam respeito aos indivíduos com os quais ele detinha ligação. Suas quimeras em idade avançada, alegorizam possíveis consequências de se seguir um estilo de vida rude e apático.

Ao se fazer uma análise mais perspicaz e detalhada, torna-se claro o diálogo da obra com alguns aspectos do corpo teórico freudiano. As abstrações de Borg revelam conteúdos dolorosos e conflitantes armazenados em seu inconsciente. Conteúdos dentre os quais se encontram experiências austeras e traumas, a exemplo do dissabor em relação à sua prima e namorada de mocidade, Sara, que dispôs do relacionamento com o mesmo, optando pelo início de uma aproximação com o seu outro primo e irmão de Isak, Sigfrid Borg. O infortúnio dos devaneios referentes à Sara, são intensificados pela presença de uma apetecível jovem caroneira cuja o nome coincidentemente é Sara; Isak também oferece carona aos dois companheiros de Sara, Anders e Vitor.

Borg presenciou um episódio de adultério de sua esposa, o que marcou-lhe agudamente. Nas palavras do “inquisidor” – personagem presente em um sonho do ancião – agente que implica à Borg suas “sentenças” baseadas nos seus respectivos opróbrios, encontra-se uma preciosa ilustração da problemática – em relação ao adultério – enfrentada pelo médico: “Muitos esquecem de uma mulher morta há trinta anos. Alguns guardam uma imagem frágil, mas sua mente sempre guardará esta imagem”.

 No estado psíquico em que a personagem nos é apresentada na narrativa, seus materiais inconscientes se encontram em grande rebuliço. As agitações inconscientes sempre carregam consigo mensagens que buscam ser transmitidas ao consciente. Na situação específica de Borg, os fatores inconscientes potencialmente carregam a essência de seu passadiço egoísta, arrogante e infeliz. Possíveis atribuições de significado à angústia vivida pelo médico orbitam ao redor de dois afetos humanos, demasiado humanos: culpa e desilusão. Culpa ocasionada por sua apatia; desilusões ocasionadas por traumas amorosos. O provável remédio para suas aflições, seria o perdão sincero e genuíno. O perdão sincero e genuíno daqueles aos quais acabou, por desventura, afetando negativamente ao longo da vida. Mas para Borg, em devidos casos, o perdão é impossível, dado o fato de que muitos daqueles com os quais ele travou contato jazem no sepulcro. Pela lógica, Borg está fadado a sofrer até o fim de seus dias e lidar com uma matéria psíquica bruta, de difícil elaboração.

Em uma intrigante cena do filme, vemos o fictício diálogo – engendrado pelo sonho onde Borg é conduzido pelo “inquisidor” – entre o médico e Sara. No diálogo, Sara humilha o médico ao ponto de o mesmo dizê-la que tais afrontas machucam-no agudamente. Após o relato de Isak, Sara diz a ele uma frase chave para o entendimento de seu sofrimento: “Como professor, devia saber porquê dói, mas não sabe. Pensou saber tanto, mas não sabe de nada”. Evidentemente, Borg é um homem dotado de ampla formação erudita; porém, no âmago do desespero, não há explicações racionais, há apenas a dor de estar vivo e ter de aguentar o ímpeto da desgraça. Borg é um homem ilustrado, mas sua áurea de conhecimento não se sobrepõe às agruras da solidão e seus respectivos desprazeres. As palavras de Sara nos remetem novamente ao pensamento de Freud e outros autores de cunho materialista, ao exemplo de Nietzsche: somos energia oscilante, a consciência é apenas um ínfimo traço ante ao inconsciente. Por metáfora, a consciência é um pequeno barco em meio a imensidão do oceano inconsciente.

O frequente questionamento acerca da veracidade da efetividade do elemento “Deus”, marca do cinema de Bergman, faz-se presente em Morangos silvestres. Os dois jovens para os quais Borg oferece carona, Anders e Vitor, engajam-se em uma discussão sobre a existência ou não existência de Deus. Anders, portador de tom suave e diligente, cujo sonho é ser pastor, é provocado pelo ímpio Vitor, portador de tom solene e transgressor. A discussão se intensifica e acaba por se transformar em agressões físicas, apaziguadas por Marianne. Em dado momento, os jovens questionam o experiente doutor Borg acerca de sua opinião quanto à autenticidade de Deus. Borg os responde dissimuladamente, não apoiando nenhum dos dois lados que foram postos à prova. Isso evidencia o esmorecimento psíquico/discursivo e a decadência de personalidade causados pelos cáusticos conflitos existenciais e pela idade já avançada do Doutor.

Cabe a Isak “apenas” se redimir com aqueles que ainda estão vivos e reajustar o curso do resto de sua vida, tendo em mente que seus traumas referentes às figuras jazidas podem apenas serem aplacados, entretanto, não aniquilados. Bergman executou com primazia a obra que figura como um dos zênites de sua carreira: Morangos Silvestres, uma verdadeira “elegia”  acerca da memória e da maturidade.

@petrussanctorum

5540cookie-checkMorangos Silvestres

2 comentários sobre “Morangos Silvestres

  1. Meu caro Pedro, me sinto preenchido de saber ao ler seus textos com uma narrativa séria, abrangente e atraente. Parabéns amigo.

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.