Foi você

Foi você

Jaque Machado

Deixei de tomar os remédios. Coisa estranha é que quando não se precisa deles, mais se acha que está no controle de tudo. Um grande inferno queimando ao redor e a sensação é de que nada te atinge. Depois de uma semana cheia de vitórias na carreira é bem possessível que o imenso ego te arraste para um lugar muito perigoso.

Um dia no final de quinze dias de trabalho extenuante e compulsivo, acordei e não achei minha caneca. A especial, a que minha mãe me deu de aniversário. Uma caneca caríssima, toda bordada, faiança inglesa. Azul. Verde. Não sei, tem gente que chama de verde água, outros de azul esverdeado, ainda há aqueles que falam lápis-lazúli. Eu não sei o nome da cor, mas cismei com ela e decidi que minha cozinha teria esse tom. A obsessão de pintar a parede, de buscar os detalhes de objetos com essa cor específica, não podia variar nada. Mas é horrível fazer a decoração com uma cor que não se sabe o nome, nenhum comerciante consegue te entregar o que você quer se você não sabe dar a informação. Isso me irritava, porque na minha cabeça era lógico que o verde azulado era daquele tom que o via, paciência era curta demais. Não podia exisitr outra nuance. Me ofereciam um mais puxado para o verde, me deixando em alas. Pensa como é chato alguém querer te vender algo que você não quer enquanto segura um lindo vaso decorativo e seu filho tenta quebrar a loja, sequer deixando a mãe atabalhoada pensar se a cor que está diante de si é a que procura. Um inferno! Pragueja, pragueja e vai embora.

Minha mãe acertou em cheio na cor da xícara. Fiz 37 quando ganhei o conjunto e foi tão especial que decidi sair e comprar uma cristaleira colonial caríssima somente para receber aquelas xícaras, para que ao entrarem em minha casa as pessoas pusessem a vista nelas, as admirassem, que se perdessem no esplendor bordado de verde azulado mais impactante que já viram. E o que mais me enlouquecia nessa história, era que justamente essas xícaras eram as minhas, não tinham sido de ninguém antes, elas eram especiais para mim, contavam a minha história, só minha. Pode parecer egoísmo, mas não é. Poucas coisas na minha vida foram minhas só para ser minhas, nunca fiz questão de ter nada, nunca, nem os amores. Nem minhas roupas, que na maioria são de brechó. Sempre vi um charme em usar coisas com histórias longas, desconhecidas e dos outros, mas pela primeira vez, a minha história. Não havia sido eu a puxar o fio do blusão, a trocar um botão pela cor que destoava, a remendar um forro gasto.

E assim foi, mas não sou de guardar, eu quero usar, saborear e ter prazer em beber um chá chique de tangerina numa porcelana sedutora, a maioria das que habitam meu legatário são de Antiquários alimentados pela burguesia decadente da cidade em que vivo, sou da conta de que se temos, devemos usar, se está parado, trabalho pra limpar.

Já disse. Um dia acordei e a xícara tinha sumido.

Procurei melhor dentro do armário, vai ver alguém havia colocado no lugar errado. Nada. Nos balcões da cozinha… nada. Procurei na dispensa, também não. Perguntei se alguém havia visto, mas sabe como é, nessas horas ninguém viu, ninguém pegou. Ninguém ajuda a procurar. E eu lembrava de ter visto meu companheiro tomar um chá naquela xícara e que ela ficou um dia inteiro do lado da pia aguardando ser lavada. Desde então, nunca mais a tinha visto, me dei por conta somente naquela manhã.

“Claro que alguém quebrou… estão com medo de falar!”, comentei alto para ninguém e todos, irritada, vasculhei o lixo reciclado, nada. Mas de imediato pensei, se estão escondendo, claro que não colocariam no lixo reciclado, então fui até o lixo orgânico que estava na rua. O revirei atrás dos cacos. Nem vestígio.

“Óbvio que não vou encontrar nada, o lixeiro já passou e levaram tudo e todos ficaram quietos porque acharam que eu não iria perceber tão cedo, não iria dar falta.”

Voltei para dentro de casa enfurecida.

“Falem agora, porque estou brava justamente porque estão mentindo e não porque quebraram a xícara.”

Meu filho ficou queito, mas depois disse que não sabia de xícara nenhuma.

Minha filha olhou para ele, girou o branco da vista, ficou acocada no sofá, em silêncio.

“Foi ela.”, pensei. “Onde está a xícara?”, ela apertou uma mão na outra, ainda quieta. Os joelhos bateram de leve.

“É eveidente que está disfarçando… Não vou ficar brava, só quero parar de procurar essa xícara e se não me contarem a verdade, não vou conseguir parar.”

Diante do incômodo da mentira, decidi sair dali. Fui para o quarto, aqui nesse ponto já devia ser quase uma da tarde e a casa estava de cabeça para baixo. Todos tinham resolvido sair e me deixar ali na frustração de uma mentira. Meu companheiro, acobertando a falta de honestidade das crianças, as levou para um lanche, para passar a mão na cabeça, ser o bonzinho, o herói, o que salva, e eu como sempre, a má, aquela a quem resta aplicar o castigo, algoz do que deveria ser corrigido, fique só e injustiçada. Era só falar a verdade, só isso! Três da tarde e ainda a história da xícara…

Não suportava mais toda aquela traição. Tomei um remédio para dormir e deitei. Tomei três, na verdade. Os olhos caindo no infinito, cheios de lágrimas de culpa, os pensamentos se acalmaram, o oceano foi derrubando menos ondas, o barulho do mar retomou sua tranquilidade. “Fui uma megera com meus filhos e o pai deles”. Eu pensei que destruí algo neles, não devia ter agido assim. O teto girando e girando, enquanto meu corpo ia ficando morno no meio das cobertas, uma psicina fofa de plush recebendo minha dura consciência cheia de culpas, mas tinha algo me incomodando. Não era exatamente um pensamento, minha cabeça doía. Levei a mão à nuca, meus olhos quase apagando. Nada ali. Era mais embaixo, debaixo do travesseiro, escorreguei entre o silicone gelado, o frio toque da faiança entre os lençóis, era ela, minha história, antes de apagar completamente, fechei a mão ao redor da xícara com alívio, um conforto no coração do tamanho do cosmos. Não por finalmente ter alcançado o verde mar perdido, mas porque minha família dizia a verdade, eu senti um alívio real por estar errada. Errada verde azulado, verde praia, onde estava afundando para dormir enquanto me afogava em mim mesma. Nem sempre foi assim, tão intenso, os anos passam e o sentimento é de ter sido tragada para um morro de folhas que se acumula com os anos, é macio e tem cheiro selvagem, se fica seduzida por longa pilha, sair é difícil, não se percebe o quanto a decomposição age sobre a mente, até só sobrar insanidade. Nem sempre foi assim, eu disse, houve um tempo em que os dias eram livres e cheios de aventuras, cheios de esquinas perigosas e escolhas de merda.”

 

@jaquemachadoescritora

 

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