Fiados na esquina do céu com o inferno

Entrevista com Eury Donavio – Fiados na esquina do céu com o inferno |

Por Geórgia Alves

Eury Donavio, nascido na cidade de Floresta do Navio, sertão pernambucano, desde menino assentou terreno no Recife, e hoje mora entre um dos melhores bairros, senão o mais literário, no sentido da história e da estética de suas praças e logradouros históricos, da Zona Norte da cidade. Enquanto estudante do colégio São Bento, que fica mesmo é em Olinda, fez, em silêncio, do seu grande projeto de vida objeto de um método.

Formado em Engenharia, Eury começou colecionando frases, expressões que ouvia na infância nas idas e vindas ao interior. Repare que é difícil encontrar parelha para o povo nordestino em matéria de ditado popular, frase de efeito e oração recheada de sabedoria. Entre as melhores que encontrei no livro, há esta a “la Raskonikov”, bem dostoievskiana: “Na terra, só existe castigo pra quem é descoberto, e ninguém vai pro inferno porque matou o cão” (DONAVIO, Eury, Fiados na esquina do céu com o inferno, pág. 94).

O livro foi publicado pela Editora Coqueiro, comandado por uma livreira bastante conhecida do litoral ao sertão, em Pernambuco, Aninha Ferraz. Aliás, Ferraz e outros sobrenomes sertanejos são bastante conhecidos em todo o Nordeste por grandes atuações, grandes feitos e também grandes disputas e pelejas que se arrastaram por gerações e gerações. Um pouco do cenário que iremos encontrar em “Fiados na esquina do céu com o inferno”.

A história desta personagem que conhecemos pela alcunha de Matador, a enfrentar purgatórios, infernos, céus e outros sertões da geografia e da vida mesma, mas também do universo do fantástico, para cumprir sua sina. Melhor dizendo, uma missão, dado que não se disse menos de Virgulino Ferreira, o Lampião, com quem o Matador bem se assemelha ao empunhar uma parabelo, arma de origem alemã, que pelo sertão virou sinônimo de prestígio para quem desafia a “Ordem”.

E para ter certeza de que seu destino se cumpriria com eficácia, Matador se inspira tal qual no cão dos infernos e, para sorte ou azar, também não pode eliminar de próprio punho seus grandes inimigos, pelo menos até o meio da trama. Segue a entrevista com Eury, que agora celebra o feito de um ano de livro lançado, com direito a dois prêmios, menção honrosa pela União Brasileira dos Escritores do Rio de Janeiro (Prêmio Aluísio Azevedo, categoria Romance) e vencedor do Prêmio Álvaro Maia, melhor romance ou novela do Prêmio Literário Cidade de Manaus 2019. A conversa sucedeu aos três meses de lançamento do livro, ainda no período de isolamento social, da terrível experiência que vivemos com a pandemia. Entre tais momentos de lamentação, milhares de mortes, confusões e sentimentos tão contraditórios que deus ou do diabo duvidam, Eury fala sobre o romance, respondendo a sete perguntas. Aqui vão elas:

GEÓRGIA – Fala um pouco sobre os prêmios que o livro recebeu.

EURY – Os prêmios que o livro recebeu foram em concursos de obras inéditas – mencionados acima – em 2019. Lancei o livro em outubro de 2020 e agora, em 2021, foi premiado em um concurso de roteiros, adaptei o “Fiados…” para uma série em seis capítulos. Findei o ano com mais essa boa notícia.

GEÓRGIA – Você acredita que o mérito do livro está, de saída, numa coragem de tua parte, porque você sendo engenheiro, com a vida estruturada, já com uma carreira, um trabalho fora da Literatura, se aventurar por este outro caminho tão emblemático?

EURY – Coragem é uma palavra bem interessante… Talvez, devido à minha trajetória a melhor palavra seria “ousadia”. Eu trabalho com Tecnologia da Informação, então, digamos assim, tive que encontrar o tempo livre para escrever, porque é o meu outro trabalho que paga as minhas contas. Talvez alguém só seja ousado também com coragem. Nisso fui bastante arrojado, tive que enfrentar os medos, nunca fui bom em gramática, sempre li pouco para uma pessoa que pretende escrever. Outra coisa que foi muito importante foi a persistência ou a ousadia, como preferir, eu tive que ser persistente, que estudar, que suar muito.

GEÓRGIA – O fato é que além do enredo envolvente, o livro apresenta essa questão de refazer uma linguagem, uma gramática nova, deve ter dado muito trabalho mesmo…

EURY – Enquanto estava escrevendo o livro, estava também aprendendo a linguagem do romance, então foi um processo que se mostrou mais longo por este motivo, pode ser que se me dedicasse apenas ao tema do livro tivesse levado a metade do tempo. O próximo prometo entregar em menos de dois anos.

GEÓRGIA – Tenho uma primeira provocação para você. Agora que a gente já assentou aqui os ânimos, minha pergunta é sobre as paixões que estão muito presentes no livro. Com esse ímpeto, te pergunto: Quando sobra ciúme falta amor?

EURY – Eita, isso aí é muita filosofia…

GEÓRGIA – É não. O assunto cabe na roda.

(Risos)

EURY – Eu acho que não existe uma resposta universal, eu acho que existe uma boa resposta para isso, para cada pessoa tem uma resposta para essa pergunta. E cada um tem um direito a uma resposta diferente. Eu posso ter uma resposta com base na minha perspectiva, com base nos meus valores. Mas pode parecer uma resposta completamente absurda para outra pessoa com base em outros valores.

GEÓRGIA – Acompanhei outros depoimentos teus. Você menciona, em mais de uma entrevista, a tua “dificuldade com a gramática”, mas no uso da língua falada pelo povo, neste caso do modo de comunicação, do “idioma” nordestino, você dá aula. O livro tem um material referente neste tema, que língua portuguesa? Para você cabe essa pergunta, uma vez que a gente observa tua facilidade em expressar a maneira da língua utilizada no sertão.

EURY – Na parte da oralidade da língua, nunca senti dificuldade. Muito pelo contrário. Sempre fui colecionador de expressões. Fui armazenando aqui e usando no dia-a-dia, no meu cotidiano. Sempre fui muito atento. Uma conversa ou outra na volta para o interior, uma conversa sobre caça. Eu guardava, isso é uma coisa que faço desde que me entendo de gente. Nesse campo da fala, da oralidade, tenho facilidade e sempre achei muito interessante ouvir as conversas. Se tinha um aspecto mais puxado, da língua, fui ponderando. Na hora de escrever, principalmente escrevendo na forma de um romance, quando a linguagem da trama é mais puxada para a oralidade, é preciso encontrar uma maneira de harmonizar isso com uma gramática, não é preciso ser escravo dela. Uma dificuldade que eu tive foi até achar esse tom de transgressão e harmonia com a gramática. Não sei se respondi o que você perguntou no final.

GEÓRGIA – A verossimilhança é, de fato, o mais importante. Quando o personagem faz parte de um contexto outro, não cabe a norma culta. Outro fator é que, neste caminho de escrever pela força de uma oralidade, você invoca também forças, de certa forma, religiosas, de crenças em sabedorias antigas. Ao pensar o uso da língua, você estaria dialogando com o universo do divino, do pragmático, o mundo real e o inventado fizeram parte de teu trabalho?

EURY – Vê bem, parti muito para explorar essa questão da oralidade, o meu objetivo foi primeiro porque sou muito fã do universo da Literatura Armorial, da escrita de Ariano Suassuna. Queria fazer uma releitura desse Regionalismo, de um Regionalismo fosse mais atual, tanto é que tentei imprimir um ritmo mais rápido, mais acelerado. A coisa partiu daí e fiquei sempre em dúvida de até que ponto ir no caminho do “regional”, porque desperta muito preconceitos. Acompanhei debates sobre preconceito linguístico, por causa disso. Procurei ser muito cuidadoso nessa questão. Quis relembrar a Arte de Ariano Suassuna, mas com muita autonomia.

GEÓRGIA – Você é engenheiro, mas acredita que a língua nos aproxima da “verdade do mundo”?

EURY – Primeiro a gente vai ter que chegar num consenso do que é Deus, eu sou ateu. Sou uma pessoa espiritualizada, acredito em energias e em equilíbrio cósmico. Acredito que, de alguma forma, a gente é infinito, também não acredito que exista uma pessoa controlando tudo isso. A linguagem também é uma crença numa forma de espiritualidade, a expressão é uma forma de arte, isso traz um pouco de espiritual na sua vida, mesmo numa conversa informal, num e-mail que você troca.

GEÓRGIA – Amor. Com sua capacidade de reinvenção da língua, você inventa “sinônimos” para alguns sentimentos bem importantes. Nesse caso, amor virou “pesando as contas certas”. “Eu te amo” virou “estico meu peito na frente de qualquer bala na tua direção”. Tô certa?

EURY – São outras formas de dizer. De repente, você tem várias formas de dizer “Eu te amo”, por exemplo, também se pode dizer sem nenhuma palavra, somente com um gesto. Já que nosso elemento é a palavra, na Literatura há a liberdade da reinvenção. Fazer a pessoa ler e até pensar, “já li sobre isso um milhão de vezes, mas nunca desse jeito”. Buscar dizer as coisas de uma maneira diferente, trazer um ar novo. Dar a sensação de que a história é nova, embora as histórias sejam as mesmas, é preciso conta-las de um jeito diferente.

GEÓRGIA – Por fim, gostaria de conversar sobre um elemento do romance, que é a arma “parabelo”. O que é isso da arma presente no imaginário do homem nordestino? E quanto à escolha do nome da arma…

EURY – Primeiramente eu sou muito contra qualquer uso de arma. Para começo de conversa. A parabelo é uma arma que ficou muito famosa no sertão porque era a pistola que Lampião usava, foi criada em mil oitocentos e tanto, era uma das armas que Lampião usava. Sendo que parabelo não é o nome verdadeiro dela, que traz o nome da marca alemã que criou essa forma de pistola, na verdade o nome é Luger Parabellum. Mas no sertão virou parabelo. Como isso é muito cantado em milhares de temas de cordéis, foi uma referência a essa arma que tem essa história e essa marca por conta de Lampião.

GEÓRGIA – Mas o nome parece caber sob medida, estudando Romance de Formação, sob uma perspectiva de enxergar como a Literatura, despertando estesias enquanto arte, transforma o leitor. Então, enquanto elemento literário, numa versão literária do Trágico, a palavra “Parabelo”, promove essa estesia de alguma coisa que subverte a ideia do Trágico, de modo fazer crer na falta de sentido, e que ela, como elemento do inconciliável – levando ao que é irreversível – representa essa “sugestão do caminho para o belo”, mesmo que guie ao Trágico.

EURY – A arma simboliza isso.

GEÓRGIA – E quanto ao aspecto da religião, da carga de superstição do Nordeste?

EURY – Eu me preocupei enquanto estava compondo os rumos da história porque não queria parecer ofensivo às crenças religiosas, nem despertar ódios, porque as pessoas já estão propensas a odiar. Odiar, inclusive, diante da mensagem mais bonita do mundo que é amar ao próximo, e por este motivo mesmo odiar. Como o homem consegue distorcer essa mensagem, manipular de forma a matar. O que muitas vezes me assusta é como se pega o ideal, puro, belíssimo, e transformar num instrumento de manipulação, de poder de extermínio. Fazendo as pessoas matarem em nome dessa mensagem. Em nome dessas crenças. Inclusive esse é o tema do meu próximo livro. A manipulação em massa, como instrumento de controle e de poder. Essa é uma questão que me preocupa muito, como coisas bacanas são usadas de forma tão perversa.

@georgia.alves1

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