Ele, e……..

Ele, e……..

Pedro Albuquerque

    Ele contemplava, com a boca entreaberta, ligeiramente salivante, e sentia passarem – celulosamente frescas –  pela extremidade ressecada do polegar esquerdo, as páginas do maldito livro de hermenêutica que nunca chegavam ao fim. Dizem por aí, longe, na China ou no Nepal, que é o caminho que excita e escarra abundante – como um daqueles senis do truco na praça – o prazer. Mas isso é longe, muito longe e a ânsia estraçalhante da memória de elefante e razoabilidade referencial-discursiva estavam ali, bem ali, perto, do lado, baforando aos ouvidos, apoiadas no tronco. “Elas pesam e soam como aquele Niemeyer já meio desgastado que tem lá na Liberdade, em BH. Mas porque baforam tanto? Será que, de cansadas, me cansam? ” Pensou ele. Ora, não era hora de se pensar nisso. Aliás, não há espaço para isso na hora; pelo menos, não naquela hora. Ele tinha que ler, mas vacilava. O metilfenidato não estava ajudando muito. Certa feita, um neurologista, sujeito meio desengonçado e careca, disse que não era só o TDAH – modinha, alguns pregam – mas também o Transtorno Bipolar, negado – num futuro parecido com alguma coisa do Frank Herbert – por um psiquiatra, um bom tipo, um misticista baixinho, de abdômen argutamente predisposto, bojudo, mamas salientes, meio rústico, pouco expansivo. “Esse cara parece um tatu” pensava ele, em involuntária inocência, quando das consultas com este sujeito. Pois, bipolaridade ou não? Ele preferia ficar com o “vai lá saber” ou o “eu ein” que sempre ouvia da tia, mas que também não deixava de angustiá-lo.

    Quase todos instantes, ele deslocava o braço em direção ao Motorola Moto G6, enganchava-o esperançosamente por sobre o vácuo da pequena cuia formada na palma da mão em função do arqueamento dos dedos que, numa conjuminação pouco geométrica, seguravam o aparelho e desbloqueavam-no, retirando o sistema do modo “não perturbe” no ímpeto de deparar-se com uma novidade, uma curtida no Instagram ou uma mensagem dela. Mas *quase todos os instantes* nenhum movimento virtual aprazível acontecia. Em seguida, ele sentia um frio nos músculos e um formigamento na região do Córtex Pré-Frontal, talvez sinônimos de um descaminho com o real. O real não é mais a areia onde derrapa o motoboy ou o pé de madeira sucupira da cama da mãe. O real, hoje, gira em torno de complexos sistemas de criptografia e algorítimos que passam por satélites e tubos marinhos. Não é legal quando essas coisas não são eficientemente prazerosas. Não é legal quando o real não é eficientemente prazeroso. Com uma certa agonia, ele “desenrijecia” a Metacarpo Falangiana e deixava o Motorola escorregar taciturno pela mesma palma da mão, agora, adequadamente circular e regular.

 Num ato, aparentemente espontâneo, fundamentalmente previsível, ele levantou-se da velha e desconfortável cadeira de aço pertencente a um conjunto ordinário de cozinha fabricado nos anos noventa pela Itatiaia, apalpou novamente o Motorola, dessa feita a deixa-lo repousar de maneira confortável na mão tendo-se em vista, sua permanência ali por um longo prazo. Ele desviou, em lapsos dispersos de segundos, a atenção do Motorola, para o próprio estado de consciência e logo apercebeu-se guarnecido de um logos ridiculamente limitado. Um desconforto áspero enrubesceu-lhe as têmporas e o fez franzir a sobrancelha esquerda. A única consciência a ele tangível naqueles segundos *dispersos*, era de que ele não queria estar ali, naquele apartamento pastel, de estrutura fora de esquadro e arquitetura irregular, numa pequena e desinteressante cidade mineira das vertentes, ruidosamente pacata. Ele queria estar com ela, deitado de conchinha em um daqueles sofás enormes. Ele idealizou precipitadamente, uma Smart tv Sansung de oitenta polegadas ou um telão de reprodução de filmes defronte ao corpo-conchinha e o sofá; todavia, em seguida, concebeu melhor ainda: sem tv. Como imagem, apenas a projeção do conjunto de carne rigorosamente recortado, entrecruzado e costurado, de epiderme leitosamente branca e os polímeros proteicos capilares abundantes, contínuos e parcialmente ondulados que descem até a altura do pescoço. Ele encantava-se toda vez que balbuciava para si mesmo, em tom de húmido desejo e sublime admiração: “meu deus, como ela é magistralmente arranjada em cada uma das três dimensões. Não sobra, não falta. Ela é morfologicamente meditativa, iluminada”.

    Passados os instantes de segundos *dispersos*, ele reconduziu a atenção ao Motorola, com a capinha carcomida pelo tempo e o sistema android desatualizado. Ele ligou a tela do Motorola e, mais uma vez, desbloqueou-o com aquele ímpeto, aquela ânsia do deguste de uma novidade saborosa…. nada novo…. eh, nada novo…… foi, pois, deslizando com o dedo polegar direito – bem com aquela capa enfezada onde estampam-se as linhas confusas e amorficamente labirínticas da impressão digital – por sobre a tela, mudando os aplicativos estampados nas primeiras faces lateralmente, latentemente móveis do aparelho celular Motorola modelo Moto G6 ano 2018, em direção ao pequeno quadrado vermelho “lábio mordido” de vértices parabólicos que abriga em si, um triângulo equiláterio cinza caído em posição vertical: o famoso símbolo do YouTube. Com um toque frio e seco, demonstrando certa experiência – já quisera ele que essa experiência estivesse atribuída, com efeito, a outros extratos pragmáticos da vida – ele abriu o famigerado aplicativo de vídeos a procura de qualquer uma das músicas presentes nas suas playlists estranhamente ecléticas que caminhavam pelo funk produzido por produtoras belo horizontinas, um tipo de sonoridade que reside nas batidas fortes e letras torpes, no âmbito do obsceno – sempre que mencionava-se o termo “obsceno”, ele lembrava à distância, de ter lido alguma coisa sobre a corrosão midiática/pós-moderna do elemento erótico, algo sobre a perda das “vestes da graça”. Ele sabia que este foi um conceito elaborado por algum italiano, mas também sabia que leu a respeito disso em outro lugar, talvez num livro do Byung Chul-Han – uma estética musical “hipostaseamente” diferenciada das produções cariocas e paulistas, uma estética um tanto mais crua e direta e torpe e radicalmente mais afeita a notas agudas que se contrastam de maneira desapegada com os graves característicos. Mais trincada… isso, o funk mineiro é indubitavelmente o mais trincado, o mais fragmentado de todos… nossa, esse tipo de estética musical cairia muito bem num equipamento de som paredão da JBL – sistematicamente programado e funcionalmente preparado para as frequências sonoras que se rarefazem rapidamente entre extremos que variam entre ondas cujas cristas são mais descritivas e os vales mais ocos à ondas cujas cristas são mais projetadas e os vales mais argutos – instalado na caçamba de uma Volkswagen Saveiro Summer 2009, rebaixada a cinco centímetros do chão, aro 22, pneu linguicinha e farol xênon. O conteúdo das playlists exóticas também caminhava pelas mais elevadas e sublimes sinfonias do romantismo que tocava no coração e pulsava nas artérias aristocráticas germânicas do século XIX; passando pelo rock progressivo britânico dos anos 60/70; exercícios excruciantes de arpeggios e escalas do rock melódico e neo-clássico de homens como Jason Becker e Yngwie Malmsteen; o Rip Rop gangsta californiano dos anos 90;  música eletrônica dos anos 2000 e, claro, a MPB: coisas como as de Chico, Gal Costa, Clube da Esquina, Flavio Venturini, Beto Guedes, Fagner e o seu preferido: Belchior, o grande pai das distâncias, receios e paixões selvagens. Sim, são playlists esquisitas, talvez até “personaliticamente eclipseais”, mas isso pouco ou nada importava para ele. Ele sempre gostou de banana no arroz com feijão mesmo. Será que todos que são afeitos à banana, retalhada em pedaços moderadamente côncavos, misturam em uma completa orgia alla cinema paulistano da Boca do Lixo, músicas de gêneros, inspirações e expirações tão diferentes? Ele não sabe. Ele também não sabe se ela gostava dele assim como ele dela. É por isso que ele está assim, naquela posição semi-hereta, com a mão direita semi-orgânica, retraída, enganchada no Motorola Moto G6. O produto da altura desengoçada com a pele parda e a coluna em declive de uns vinte graus por sobre os ombros que mais pareciam os planos inclinados dos exercícios de dinâmica do ensino médio fazia-lhe se sentir como um pedaço de viga com a ponta dobrada ou uma foice. Ele estava prestes a dar início àquilo que ele e o seu psicanalista – um senhor muito simpático e perspicaz o qual a presença casmurra, na situação concernente à em que ele se encontra, é imprescindível para a sua saúde mental e manutenção de um curso algo real e razoável das coisas – convencionaram chamar de “movimentos estereotipados”: uma série de dispêndios irregulares, inúteis e errantes de movimentos musculares rígidos e vazios que se transladam de um lado para o outro loucamente no nada. Não o nada bacana que nadifica da filosofia Heideggeriana, senão, o nada mesmo. Aquele nada chato, aquele portão do vizinho que abre rangendo ignorantemente as polias e roldanas mal lubrificadas bem na hora do torpor pós almoço.

    Ele – em posição semi-hereta – munido do fone de um fone de ouvido falsificado, plugado no telefone Motorola modelo Moto G6 ano 2018 enganchado na mão direita – em conformação semi-orgância – deu início, então, ao horrível e vacilante show dos “movimentos estereotipados”. “Deus! Quanta energia desperdiçada para nada, quanto esmo, que tristeza” pensava ele sempre que se encontrava nesse estado delirante, parecendo uma carreta… Sim, uma carreta!! Uma das centenas de carretas sujas e empoeiradas que passam todos os dia em Lafaiete, vindas de Teixeiras, cidadezinha perto de Viçosa, irrompendo pelas curvas e deformidades da MG-482, carregadas de minério sei lá o que. Uma carreta, um  cavalo mecânico, uma Iveco Stralis, por certo: bem mineira, bem feita em minas, de tanques quase vazios, com o ECU espástico, mandando comandos inconstantes, débeis e cíclicos para os cilindros obstinados e pistões bufantes, excitados pela verve do diesel e atenuados pelas galerias de circulação de água, lubrificados pelas escuras cadeias carbônicas do viscoso Óleo Lubrax de um posto de combustível qualquer, fazendo girar inconsequente a pequena hélice circular da turbina, expelindo a fumaça negra ao longo do escape curvo de ponteira 5x1200mm que ruge feito um tigre em direção à fêmea no cio e inspira – no freio motor – à alegria estonteante do nariz de um viciado e manda o impulso mecânico para o terceiro eixo e faz o conjunto cavalo mecânico/carreta subir o morro carregado com quarenta toneladas esgarçadas do minério desconhecido e brilhante e desce a Padre Lobo forçando as lonas de freio, fazendo exalar o odor ardido e nauseante de um gigante em queda vertiginosa e esquenta e esfria, aperta e depois afrouxa e depois desinquieta e……. enfim, uma carreta, um motor, motores e carretas são épicos. Talvez, tão épicos quanto uma epopeia grega para quem sabe observar e sentir todo aquele peso, toda aquela carga de signos incisivos, compenetrantes, mas ele não é uma carreta, não é tão épico: algo mais deslocado e desconfortável, de difícil explanação, tonto, ignorante, roto. E ele está lá, como uma mariposa ansiosa, indo de um lado para o outro em vetores desarmônicos e surdos, naquele cubículo de nove metros quadrados. É tanta energia gasta com tanto erro. Só por que ele não sabe se ela gosta dele? Só por que ele está irritantemente sozinho e vazio? Ora, não há desculpa. Esse é um mecanismo de defesa bem primitivo. Talvez, a galera do Behaviorismo chamaria todo esse conjunto de movimentos escatológicos e aéreos de TOC. Não importa o nome, importa o tempo expelido, transpirado com todo esse aviltamento existencial. Mas ele se cansa, Oh, ele se cansa sim. Cansa e para, deita na cama e fica triturando, como um moedor velho de carne, toda a dor simbólica de ter “perdido tempo” com algo tão pobre, primitivo, bronco. É de se escutar as fibras amargas de ausência sendo dilaceradas por esse moedor de carne mental, cruel. E, afinal, continuam transitando dispersas as pessoas na rua; e continua o milho a ser debulhado pelas grandes colheitadeiras nos latifúndios; e continua a demência alheia e os dias continuam passando. E, agora, ele ali, deitado na cama de chão de madeira, em um colchão velho e rasgado, sem lençol, parcialmente coberto por um desgastado e abatido edredom rosa, o Motorola modelo Moto G6 ano 2016 repousando em cima de uma das unidades do par de chinelo Havaianas preto tamanho 47 nas adjacências da cama, e a dúvida amarulenta, e aquele cheiro resplandecente de mofo, e a saudade da mãe, e o pouco de farinha que sobrou em cima do cartão do SUS, e aquela imagem de um belíssimo enquadramento de algum filme do Khouri, e as reminiscências do vô dirigindo imponente o Ford Del Rey Ghia 1.8 azul marinho 1991, e a fumaça dos sinalizadores da festa da torcida do Cruzeiro, e as atividades de Química do quarto módulo CESEC, e a boneca de porcelana repousada no canto da prateleira na cozinha, e os espasmos musculares, e o barulho socado dos vizinhos transando no apartamento de cima, e……..

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