COMEÇOS INESQUECÍVEIS – O campeão

COMEÇOS INESQUESCÍVEIS – O campeão

Ludo Santos

Meus caros sete leitores, sei que vocês devem estar indignados por eu ter escrito um texto sobre os três melhores começos de filmes do meu panteão, mas só ter revelado o 3° e o 2º colocados, deixando para outro dia a divulgação do campeão. Mas prometo hoje revelar para qual película vai a medalha de ouro, pois a maioria dos leitores se mostrou aflita para saber o final da novela.

Então vamos ao pódio. O ouro vai para o começo de um western filmado num entardecer de junho de 1955. Depois dos créditos iniciais, surge um letreiro escrito TEXAS 1868. Em seguida a tela escurece e então uma mulher abre uma porta que emoldura a explosão de cores e luz da paisagem desértica do Monument Valley. Logo a seguir, no mesmo plano, após uma panorâmica magnífica, a mulher sai para uma varanda da qual, pelos seus olhos, divisamos um vulto solitário chegando a cavalo. Depois dos primeiros cortes, a câmara muda o enquadramento para nos mostrar a fachada de um rancho donde outros personagens saem vagarosamente – um homem, uma menina com sua boneca, um cão, uma moça e um garoto. Todos nos são apresentados na varanda enquanto aguardam a aproximação lenta do desconhecido. Num certo momento, a moça reconhece o forasteiro e exclama “É o tio Ethan”. O cavaleiro desmonta vestido num uniforme dos confederados, cumprimenta secamente o irmão e tepidamente beija a cunhada que lhe dá boas vindas. Em seguida todos adentram ao rancho.

Esta memorável sequência de 94 segundos é o começo de Rastros de Ódio (The Searches), a obra-prima de John Ford (1891-1973), o maior contador de estórias que Hollywood já conheceu. O filme hoje é classificado pelo American Film Institut como o maior western de todos os tempos e o 12º melhor filme nos mais de 100 anos da sétima arte (o Cahiers du Cinéma o elegeu o 10º melhor), mas inacreditavelmente não foi indicado a nenhum Oscar na premiação de 1956. O vencedor daquele ano foi “A volta ao mundo em 80 dias” que hoje talvez não entre nem pra lista dos mil melhores filmes da história do cinema.

O início do filme se tornou antológico porque, além da beleza plástica das imagens, a metáfora da porta se abrindo estabelece um inédito diálogo narrativo com o fechamento de outra na cena final. Desde a antiguidade sabemos que a abertura de uma porta simboliza a luz, vida, salvação, e o fechamento as trevas, morte, castigo.

O interessante é que não havia abertura e fechamento de qualquer porta no script original. Ford não dava bola para roteiros. Lia-os apenas para saber o que e como contar. Nunca permitia que um roteirista marcasse os takes e muito menos apontasse se o plano deveria ser fixo, panorâmico, travelling ou zoom. Adorava improvisar e mudar diálogos à medida que filmava. Não era um diretor de atores, embora exigisse muito deles nas filmagens. Também não gostava de muitas falas nos seus filmes. Vindo do cinema mudo, privilegiava as imagens e gestos para narrar suas sagas.

Entre a chegada e a partida, um intervalo de duas horas onde Ford nos conta a história do amargurado e desterrado soldado Ethan (John Wayne), um personagem ambíguo, complexo, o qual, após um massacre perpetuado por comanches no rancho do irmão, elege o ódio racial e a vingança como seus únicos objetivos de vida. Serão cinco anos caçando o chefe índio que matou quase toda família, poupando somente a sobrinha de 10 anos para ser sua squaw quando crescesse. A ferocidade assassina estampada por John Wayne, à medida que se aproxima do encontro com o cacique, é umas das melhores interpretações já registrada na tela. Nem parece o Wayne previsível e às vezes canastrão de outras películas. Lembra mais um talentoso discípulo do Actor´s Studio, embora saibamos que ele nunca teve qualquer atração pelo método de atuação de Stanislavski.

Apesar de Rastros de Ódio ser o melhor filme do diretor que mais ganhou Oscar até hoje (quatro por direção e um de melhor filme), Ford derrapa feio quando tenta ser cômico no western, principalmente num episódio envolvendo uma índia gorda. Mas os muitos acertos e os poucos deslizes do filme deixemos para outra oportunidade.

Não quero criar polêmica, mas o Veríssimo que me perdoe: o meu começo preferido é o melhor e não se fala mais nisso. Se ele quiser defender o seu Yojimbo, aviso que tenho um exército de velhos conhecidos das telas que cerraram fileiras comigo na escolha de Rastros de Ódio. Sem querer me gabar, cito apenas alguns: Martin Scorsese, Steven Spielberg, George Lucas, Win Wenders, Jean-Luc Godard, Sérgio Leone, Francis Ford Coppola e – tome Veríssimo – o Akira Kurosawa. Precisa mais?

Ludo Santos – Primavera de 21

 

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