BENDITAS BENEVOLENTES

BENDITAS BENEVOLENTES

 

Sydney Nascimento

Desde sempre os povos evitam enunciar nomes tidos como malignos. Para não se invocar a presença de entidades terríveis, adota-se o recurso da antífrase ou faz-se uso de apelidos carinhosos. Alguns deles aparentemente ingênuos. Por exemplo, tinhoso.

Os antigos gregos não foram exceção a esta regra. As Erínias (entidades infernais criadas a partir do sangue derramado por Urano) eram encarregadas de punir toda pessoa que perturbasse a ordem no mundo. Elas eram chamadas pelo codinome “as benevolentes”: eumênides em grego. O nome da mais famosa delas reverbera ainda hoje entre nós: Megera, a divindade responsável por semear a discórdia e a desavença entre os humanos. Até os deuses olímpicos as temiam, contudo, apesar deste temor reverencial, após a ascensão de Zeus ao poder, todas as divindades e criaturas da mitologia grega que antecederam a geração de deuses e deusas do Olimpo decaíram de status: eles representavam a antiga ordem que era liderada por Cronos, pai de Zeus. Digamos assim, com certa liberdade poética, que as fúrias eram representantes do ancien régime. Na obra Eumênides, escrita por Ésquilo e encenada pela primeira vez em 458 A.C. na antiga Grécia, as erínias são as guardiãs da antiga ordem e, por analogia, defensoras de tudo que a Bastilha representava para o antigo regime francês.

Na trilogia Oréstia, da qual a obra Eumênides faz parte, Clitmnera, princesa espartana que fora forçada a casar com o assassino do primeiro marido, é novamente ultrajada ao saber que a sua filha (Ifigênia) fora sacrificada pelo próprio pai (Agamenon) para que os navios gregos fossem favorecidos pela deusa Ártemis. Após o retorno vitorioso da guerra de Tróia, Agamenon é assassinado pela própria esposa. Muitos anos depois, Orestes (filho de Clitmnera e Agamenon), seguindo os conselhos recebidos no oráculo do deus Apolo, lava a honra do pai ao matar a própria mãe. No último volume da tragédia, as únicas personagens que clamam pela perseguição ao matricida são as eumênides. O coro das fúrias (outra alcunha das benevolentes) insiste na punição de Orestes com uma tenacidade digna do inspetor Javert. Os regimes mudam, mas certas funções continuam essenciais à manutenção da ordem.

Esta obra de Ésquilo é estudada pelos filósofos de direito como um símbolo de transição de uma sociedade que preza a vingança (dente por dente, olho por olho) e passa a buscar uma justiça pacificadora e mantenedora da ordem. Apesar da obra ter sido encenada pela primeira vez nos primórdios da democracia ateniense, a história contada passa-se cerca de oito séculos antes, logo após a conquista de Tróia. No primeiro volume da trilogia (Agamenon), o assassinato do protagonista representa a desordem. A imolação de Ifigênia representa a ordem (reverência aos deuses). O mariticídio cometido por Clitmnera representa a insubordinação feminina aos homens e a subordinação do espírito humano aos desejos de vingança (desordem e o caos). No segundo volume (Coéforas), ela é assassinada pelo filho homem. A ordem é restabelecida, entretanto, para as eumênides, nenhuma manutenção de ordem social justificaria o matricídio, esta é a grande questão da obra Eumênides. Orestes vai a julgamento em uma sessão comandada pela deusa Minerva, cujo voto desempata o caso e absolve o matricida. Veredicto: a morte humana em reverência aos desígnios dos deuses (à ordem estabelecida) é tolerada, assassinatos motivados por caprichos humanos não são mais admitidos. A sábia Minerva decidiu pela ordem. As coléricas e implacáveis erínias são convidadas a assumir um novo papel na democrática Atenas: paladinas da sacra justiça. O ciclo das maldições familiares que passavam indefinidamente de uma geração para outra não tinha mais lugar na nova Grécia que surgia.

O que mudou desde então? Os antivax clamam pela liberdade da não vacinação e ao mesmo tempo condenam a liberdade da iniciativa de aborto pela mulher grávida. Empresas de alta tecnologia são louvadas ao oferecerem plataformas de compartilhamento de recursos materiais (casas, carros etc). Por outro lado, comunistas são execrados ao insistirem no uso comum dos meios de produção.  Quem define a diferença entre imolação e assassinato? Quem define a diferença entre ordem e caos?

Benditas Eumênides!

 

@sidneynascimento.advogado

 

 

 

13670cookie-checkBENDITAS BENEVOLENTES

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.