Às diplomacias possíveis nos jogos de poder

Às diplomacias possíveis nos jogos de poder

Geórgia Alves

Desde quando o homem é capaz de incinerar livros? Desde sempre. Desde que o homem é homem é capaz de brutalidades incontáveis. E de violações contra mulheres? Violências inenarráveis? São muitas.
Muitas ecoam em silêncio ruidoso e profundo. Outras são e foram narradas de modo a não permitir serem apagadas como rastros. Mundos mudos das violências tantas.
Afinal, como narrar uma violência?
Como falar depois do impacto de um trauma? Como? É sempre o modo ou método que nos legítima. É sempre a estrutura por trás da fachada do edifício que o põe lá de pé. E tais estratégias vêm sendo interpretadas enquanto gestos necessários para combater inumanidades até que se tornem elas mesmas também detratoras e violentas. Não há mais humanidade, que dirá elegância, sequer no mundo do Estado. Querem sobreviver sem Diplomacia? Em selvagerias.
Tudo no mundo de hoje é brutal e raso? Seria superficial assim afirmar. Nem tudo no mundo se perdeu. Há brutais violências. Violações de direitos civis, humanos. Há Direitos Civis inumanos.
Mas não foi sempre assim?
Não. Nem sempre o homem tratou o homem com incinerações. Muitas vezes, apenas, arremessou corpos de outros homens em covas rasas. Outras vezes, com zelo, visto hoje em jugos de morbidades, envolveu corpos em gomos tecidos para preservar ad infinitum a pele sobre os ossos.
A pele sobre os ossos.
Tatiana Salem Levy narra em _Vista_Chinesa_ (Editora Todavia, 2021), o fato real de um corpo sobre outro corpo sem o consentimento do primeiro homem. Neste caso, uma mulher, arquiteta, responsável pelo projeto de um campo de golfe na belíssima cidade do Rio de Janeiro. Belíssima cidade. Violentíssima cidade. Júlia é uma das tantas mulheres atingidas pelos homens que não são homens… O livro narra de modo inusitado, como numa espécie de costura dos tempos presente, passado e futuro, onde a linha condutora é a psiquê da personagem dirigindo a palavra diretamente e por meio de carta (quão de passado não há nisso?) destinada aos filhos.
Um casal de gêmeos.
Quem entendeu a parte orgânica da narrativa talvez nem precise mais ler o livro (ou bem ao contrário?) Quem precisa ler este livro talvez seja uma pergunta das inúmeras que Tatiana Salem Levy propõe. A parte orgânica do livro nos atira imediatamente no lugar mais fundo de nossas estesias. O nojo, repúdio, ódio, todos estes também violentos como resposta única possível ao agressor desta – entre tantas outras – vítima. No entanto, se pararmos minuto para refletir, a carta para ser lida pede um passo em direção ao futuro. Pede um depois do fato e um ato de enfrentar as injustiças em primeira pessoa, o que não é nada fácil.
Nada de equilibra facilmente se há um pilar ou se se está sozinho. Pior ainda se se estiver sozinha. Quando saiu para caminhar? Como saiu vestida? Por onde desistiu circular? Se embrenhar? As matas e florestas nunca foram afeitas aos modos frágeis de corpo das chapeuzinhos contra os lobos.
Os lobos, em seus hábitos de predadores deram sempre lobos, vestidos ou não em peles de cordeiros. E os olhos narradores da História não serão jamais benevolentes. Não com a chapeuzinho. A força só respeita a força. Assim como o poder só responde à altura ao poder de igual força. Nada é mais certo debaixo do céu, sobre a terra e acima do céu e sob a terra.
Por isso o fogo?
O fogo é necessário. Mas é por isso? Para isso? Por isso tive livros incinerados? Por isso soube de amigos, que escreveram livros e que me dedicaram seus livros, e por isso os livros foram incinerados? Os pogroms, o que foram? O que são os homens que exercem tal poder sobre outros homens? Não é tão somente o pensamento ou as narrativas que justificam o exercício de poder? Poder do homem sobre a forma física, nem sempre, mais frágil da mulher? Poder de mando sobre o homem de tal ou qual religião, pela fragilidade dos códigos de preservação da forma física? Poder sobre o modo de ser e de viver por códigos de poder e superioridade atribuídos a tal e qual forma de união?
Vou insistir nas incinerações, dado o tempo em que São João carregava um carneiro seja um tempo ido e santos tenham sido incinerados como livros. O que pode mover um mão na direção de incinerações de livros? Responda quem souber por onde anda as diplomacias possíveis capazes de evitar a volta média à Idade Média? Os papas, os bispos, os cavalos, Reis e Rainhas voltam todos à mesma caixa. O que faz um pastor ser dono de uma editora e poder fazer fogueira dos livros? A quem atribuímos poderes extraordinários estarão sempre a nos trair. E nós incinerar por aí. Por isso, o método precisa alinhar os três tempos. E é preciso ver que um jogo de pode justifica outro jogo de poder.

@georgia.alves1

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