Antes de içar o machado, o carrasco suplica ao condenado: “Você me perdoa?”

Antes de içar o machado, o carrasco suplica ao condenado: “Você me perdoa?”

Flávio Ricardo Vassoler
O carrasco ordena ao condenado que se ajoelhe e acople o pescoço ao talhe de madeira. Antes de içar a lâmina de seu machado, o carrasco suplica ao condenado: “Você me perdoa?”.
Ao deparar com o quadro Saturno devorando a um de seus filhos, do mestre espanhol Francisco de Goya y Lucientes, eu me lembro da sina de Natália, uma amiga querida a quem já não via há alguns anos.
No quadro de Goya, um deus Saturno de cabelos desgrenhados, olhos vidrados e fúria totalmente tresloucada canibaliza o que resta do corpo de um de seus filhos como uma cloaca – a bocarra escancarada do pai canibal acabara de decapitar sua própria cria. (Não à toa, as pinceladas convulsas de Goya me golpeiam como ondas sônicas propagadas pela explosão do infanticídio.)
Como uma filha de Saturno, Natália era acometida por uma doença autoimune, isto é, uma enfermidade que incita o sistema imunológico contra o próprio corpo que deveria defender, já que os glóbulos brancos, como sentinelas paranóicas, acreditam que as células, tecidos e órgãos são, na verdade, espiões estrangeiros prestes a dinamitar a saúde do anfitrião incauto que lhes deu guarida.
 A doença autoimune de Natália leva às últimas consequências o apocalipse de Goya: a cada ofensiva dos leucócitos contra seu próprio cérebro, sequelas potencialmente irreversíveis podem irromper, como os escombros humanos e cubistas a que a cidade de Guernica, eternizada pela tela-resistência de Pablo Picasso, se viu reduzida após os bombardeios criminosos da força aérea franquista em meio à guerra civil espanhola.
 Saturno devorando a uma de suas filhas?
Não.
 Saturno devorando a si mesmo.
 Em um dos ataques da doença onívora, Natália ficou radicalmente estrábica, como se seus olhos tivessem sido exilados em guetos incomunicáveis pelos decretos de um ditador.
Em outro ataque – Natália começava a tremer como um cordeiro acossado por mil lobos com a mera nesga de memória do que lhe acontecera -, a doença autoimune sitiara o centro nervoso responsável pela respiração, e ela começou a ser asfixiada desde dentro, como se seus pulmões tivessem sido convertidos em uma câmara de gás.
Um dos ditos mais sádicos e cínicos com que já deparei ao estudar o bestiário da história humana vem dos carrascos que exerciam seu ofício mórbido sob o cetro do rei inglês Henrique VIII.
O carrasco ordena ao condenado que se ajoelhe e acople o pescoço ao talhe de madeira. Antes de içar a lâmina de seu machado, o carrasco suplica ao condenado: “Você me perdoa?”.
Ainda que torne indiscerníveis cinismo e morbidez, o carrasco real não dilacera e devora o próprio corpo. Cabe à doença autoimune a fusão mais umbilical e incestuosa entre o cordeiro e o lobo, o condenado e o carrasco, a cura e o pus, a sobrevivência e o suicídio, a vida e a morte. É como se o útero, o ninho da vida, lançasse mão do cordão umbilical para enforcar o feto.
Numa das últimas vezes que conversamos – um arrepio gélido escala cada uma de minhas vértebras e morde minha nuca como um inseto peçonhento sempre que me lembro de tal ocasião -, Natália me disse, já sem lágrimas para desaguar sua revolta, que estava cansada – existencialmente cansada, mortalmente cansada. Súbito, ela engatilha os olhos em minha direção e sentencia:
Eu sou uma granada, uma granada que não explode. Pode ser implodida a qualquer momento. Eu sou um revólver, eu sou o tambor do revólver, eu sou a única bala que um maluco coloca no tambor do revólver para fazer roleta russa – eu sou o maluco e eu sou a roleta russa! Hoje, eu ainda não morri – é como um espaço vazio no tambor que eu sou do revólver que eu também sou. Amanhã – ou daqui a pouco, aqui com você -, a bala pode estar lá. Então, Ricardo, na próxima vez que você disser que está sofrendo, lembre-se de mim.
Ilustração de Luanna Falcão.
 https://www.instagram.com/luanna.artworks/
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