A Pata do Gato – parte 2

A Pata do Gato – parte 2

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A Pata do Gato – parte 2

.Victor Fernando

Renato estava naquela fase de monólogos, quando sentamos diante de algo, a natureza, a vida, a morte, a beleza, e ali contemplamos todo o mais, todo os recantos escondidos, que somente as almas mais sensíveis têm acesso. Passara anos preso àquela pequena vila, que antes de sair, tinha apenas quarenta habitantes. Vivia preso a uma mine biblioteca do pai, que falecera quando Renato tinha dez anos. A partir de então, ele foi morar com os tios, na casa grande, apenas a três ruas atrás. Lá, vivia muito recluso, pouquíssimas vezes fora visto na rua. Tiveram ocasiões em que ficara com anemia e periodicamente tinha crises de vitamina. Ao completar doze anos, fora convidado, inesperadamente, para um baile que haveria na praça da pequena vila. Lá, ficara sentado, olhando os outros dançar, enquanto ele ficava ao longe, observando tudo. Como era dado aos pensamentos, ficava conjecturando os motivos de não ser chamado por alguém para conversar. Houve um momento que achara que seria seu fim morrer com um saldo negativo. Foi em meio a essas conjecturas que conheceu Amanda.

-Estou pronto! – Foi dizendo Renato, enquanto vestia seu casaco apressadamente, vencido pelo frio que fazia.

Foi mostrado a ele toda a propriedade e todas as novidades que foram feitas na ocasião de sua ausência. João apontava com entusiasmo francês para as máquinas que mandara trazer da capital – apesar da sua inevitável falência, enchia-se de júbilo ao mostrar as conquistas do passado.

-Ali está! Venha, quero mostrar-lhe essa colhedora de trigo, de última geração. Quando chegou da cidade, todos da vila criavam motivos para vê-la. Durante dois dias a casa ficara cheia – Os olhos de João brilharam mais ao mostrar seu “grande empreendimento”. Ao mesmo tempo, seu rosto adquiria uma expressão tão dolorosa, que quem a visse naquele momento, não se furtaria a perguntar os motivos da sua falência.

-Meu filho, não vê que a desgraça nos acompanha? – Renato ficou surpreso, pois não havia perguntado nada. Porém, ouviu ao que o tio falava, volta e meia perdendo-se nos pensamentos. – Desde a infância nós fomos pegos pelos males. Primeiro, com a morte de nossos dois irmãos mais novos e logo após, com a morte de nossa mãe, tomada pelo tifo, agonizando em seu leito. Nosso pai, seu avô, meteu-se no mundo, com toda a fortuna que ela nos tinha deixado. Para não dizer que foi com tudo, deixou-nos uma quantia de trezentos reais, mas que durou menos de dois meses… – Fez-se silêncio. O vento frio andava pelos rostos dos dois, enquanto Renato olhava seu tio enxugar as lágrimas com as costas da mão. Continuou: – Ficamos com a casa e com uma cama, que somente ficou conosco porque ele não conseguia levar junto consigo na noite da mudança. Sozinhos, vinham os mais sórdidos pensamentos em nossas mentes. Quase metemo-nos com o tráfico. Sem saber o que fazer, resolvemos andar rumo ao interior, pois ouvimos que havia uma fazenda que contratava crianças para limpar o estábulo de cavalos. Lá, o nosso chefe fazia tudo às escondidas e avisava que caso vissem uma pessoa vestida de preto e com um semblante no ombro, era para ficarmos escondidos o mais longe possível… – João fez uma pausa de súbito. Pôs a palma da mão na testa e olhou para cima, e continuou, em tom de súplica. – Deus, não permita que outras crianças passem por isso! – Desculpe-me. Em outro momento explico-lhe tudo por detalhes. – Passou as costas da mão para enxugar as lágrimas, forçou um sorriso, com os olhos marejados, e aconselhou que deviam visitar a vila.

Passeando pela vila, João foi lhe apresentando a praça que inaugurara dois meses atrás devido a movimentos que ele e o irmão fizeram para conseguir trazer divertimento para a vila. Passaram pela casa de Nhô Garcia, uma velha que, na juventude, namorar o pai de Renato e que agora dava aulas para as crianças da vila. É culta e com grandes dotes para a poesia e filosofia. Quando topavam com alguns, João exclamava:

-Veja! – E apontava para o sobrinho. – Quem veio dar sua presença a essa humilde gente! – Carregava um sorriso ao pronunciar essas palavras. Os ouvintes apenas sorriam e apertavam a mão de Renato.

-Agora é um biólogo! – Continuava João, no mesmo tom. – Vai poder dizer que cor todos as espécies de plantas e bichos que os senhores lhe perguntarem, sempre acompanhada pelo nome científico.

-Calme, titio. – Dizia, de forma bastante modéstia. – Sou apenas um iniciante nessa ciência, e aliás, o que me importa se sou ou não? Isso é apenas um nome e nada mais. – Apesar de expressar certa modéstia, sentia-se triunfante após dizer aquelas palavras finais.

Quando ouviam as introduções do tio, que eram sempre as mesmas, todos sorriam e parabenizavam, mas apenas por cordialidade, e não faziam perguntas e nem caso. E os dois continuavam seu passeio, que não foi muito longo, pois Roberto estava cansado da viagem. O frio que fazia naquele dia amorteceu as pernas já cansadas do garoto. Apesar do frio, fazia sol e aquele contraste entre um dia claro, mas com toques de neblina, a vegetação coberta da geada da noite passada fez Roberto querer dormir. Quando chegaram, viram Fernando saindo do jardim e entrando na cozinha com as mãos cheias de legumes e algumas frutas.

-Mano, por favor, tire as Sagradas Escrituras de cima da mesa. Esqueci que ela estava aí, posso acabar sujando.

-Titio, ainda acredita nisso? – Perguntou Renato, expressando um sorriso sarcástico para seu tio.

-Acredito que não entendi o que você quis dizer. – Retorquiu João. Os irmãos o encaravam, confusos e em silêncio. Esperavam sua resposta, mas nada respondeu. Deu de ombros e seguiu para o seu quarto.

Olharam-se um ao outro após Renato sair. Não queriam entender o que o sobrinho havia dito. Eram velhos, criados aos moldes antigos e sob uma rígida disciplina do trabalho. Tentaram esquecer o que tinham ouvido e terminaram o jantar. Tentavam a todo custo esquecer aquelas palavras, mas como uma mola, eles iam e vinham. Quanto mais tentavam esquecer, quando mais seguravam essa mola, mais forte ela voltava e arrebentava, aos poucos, a parede que separava o consciente do inconsciente.

Mais tarde, quiseram retomar a conversa e esclarecer os assuntos, mas quando estavam para começar, Frederico, o filho da vizinha, a Anastásia, parente muito distante de João e Fernando, bateu à porta. Era um rapaz alto, de cabelo também longos e olhos grandes e enigmáticos. Ao entrar, com suas roupas velhas e uma timidez gritante, para sua surpresa, deu de cara com uma pessoa totalmente diferente daquela que vira partir, cinco anos atrás.

– Está homem feito…

-Não, meu amigo. – Interrompeu Renato, virando-se para Frederico, que ficara prostado, surpreso, em sua frente. – Assim como as estrelas, eu só me expando e o meu fim consumará toda essa vida, e só então não posso mais me expandir, pois estarei morto. Enquanto viver, não serei feito coisa nenhuma.

-Não quis ofender… – Ia começar Frederico, que ficara surpreso com aquelas palavras e aquela eloquência. Não era uma surpresa boa, mas muito ruim, pois não conhecera Renato daquele jeito.

-Não se preocupe com isso. – E voltou-se para o prato de comida. Era muito indiferente.

Frederico entreolhou para os homens que ali estavam, sem coragem de recomeçar. Ficaram em silêncio durante um tempo, os quatro. O silêncio foi rompido por Fernando, que o convidou para jantarem juntos. A rapaz recusou educadamente e continuou, para Renato, perguntando quando havia chegado.

-Hoje mesmo, pela manhã. Fomos à sua casa, mas ninguém apareceu.

-Estava na Horta com minha mãe.

Renato permaneceu indiferente. Frederico virou-se para os homens e os convidou para irem ouvir algumas palavras amabilíssimas que sua mãe tinha preparado para agradecer a comida que haviam lhe dado.

-Ela chora quando lembra da bondade que os senhores lhe fizeram. Depois da péssima colheita que tivemos, não tínhamos o que comer. Ouviu, Renato? Seus tios ajudam muito o povo dessa vila, todos somos gratos a eles.

-Eles são bons homens. – Disse, com uma intransigência indiferente. – Decadentes, mas bons homens. E digo isso com H maiúsculo, que é a maneira como gostam de serem chamados. Como eu disse: decadentes e nada mais. – E disse isso colocando um pouco de café na sua xícara.

-Você está diferente, Renato. – Disse tristemente Fernando, com uma voz bem fraquinha, virando-se imediata e lentamente para o prato que estava guardado em um armário atrás dele.

“Ainda bem que não perderam a faculdade mental. Não são tão putrefiz como imaginei.” Renato imaginou, mas continuou a tomar seu café e deixar esse pensamento guardado. Limitou-se a continuar a beber o café e olhando para o relógio fixo à parede.

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