UM ESTRANHO CONHECIDO

UM ESTRANHO CONHECIDO…

Pedro Santos

Num certo dia do ano de 1925, um homem apareceu nas terras de minha bisavó, Maria Batista, onde hoje existe a “Barragem do Benfica”, na cidade de Itaúna. Apeou de sua mula e ficou olhando aquela senhora com sua escadinha de filhos. Era um velho de barbas longas, dentro de roupas rotas e empoeiradas, passando a impressão de ter andado grande distância até chegar ali. Aproximou-se da entrada da casa, sentou-se num tronco de árvore e pediu água. Minha bisavó mandou um dos meninos lá dentro encher um caneco feito de lata para dar ao velho. E ele bebeu como se fosse um néctar dos deuses, numa virada lenta, deixando escapar um filete contínuo a molhar sua barba ensebada. “Agradecido”, foi a palavra que saiu de sua boca sem dentes, com os olhos postos naquela senhora de cara sisuda, entregando o caneco ao mesmo menino que o atendeu. “Que meninada que a senhora tem, hein?!!”, foi a sua segunda fala, já de pé e olhando em volta, como que à procura de alguma coisa que só ele sabia. A tarde caia e a noite na roça costuma chegar mais depressa, com suas sombras escuras e suas criaturas… morcegos dando voos rasantes, corujas com seu canto fúnebre e milhares de vagalumes a iluminar os confins dos vales e das serras. “Precisava de um lugar pra pernoitá… descansar os osso, foi uma viage longa!”, falou o forasteiro como se já fosse uma decisão sua e não um pedido. Um silêncio reuniu a meninada em volta da mãe que, sem o marido em casa, que saíra em viagem , já pra mais de um ano, indo fazer serviços lá para os lados do estado do Espírito Santo… e ninguém sabia quando voltava. A comunicação era bem difícil naquele tempo, uma carta para chegar a Itaúna demorava muito, às vezes nem chegava, valia-se dos recados de alguém que viesse do mesmo lugar. Minha bisavó, com certeza, deva ter pensado que uma recusa fosse pior, não sabia qual seria a reação do estranho, temia pela segurança da filharada pequena. “Só se for no paiol, é o que a gente tem pra arrumar pro senhor”, foi o que ela falou, tentando aparentar firmeza. O velho barbudo, já com um cigarro de palha na boca, olhava aquele povo acuado, com olhos arregalados… uma cena que já causava dó! Deu uma cusparada no chão poeirento, naquele início de noite fria que lhe ocultava as feições do rosto e soltou uma frase que bateu no coração dos moradores como um facão de roçar pasto: ”Paiol, não! Vou dormi é lá dentro!” Deu uma pausa… armando um risozinho debochado no canto da boca e falou a coisa mais medonha que os ouvidos de minha bisavó e de seus filhos poderiam ouvir naquela hora: “E quero é dormi com a dona da casa!” Foi como jogar uma pedra num bando de galinhas no terreiro. Dona Maria Batista deu uma recuada escada acima até a varanda, arrastando na barra da saia aquela meninada, uns chorando, outros sem entender o que ocorria. Diante daquela reação, o próprio velho deixou transparecer no seu rosto um ar de arrependimento… e parecia buscar dentro de si as palavras certas para mudar o rumo daquilo. “Espera Maria!”, foi o que ele conseguiu soltar do meio daquela barba que chegava quase ao seu umbigo. “Num tá me reconhecendo, muié?!“ Minha bisavó arregalou ainda mais os olhos pra vencer a penumbra que os separava e olhou aquele velho … “Sou eu, muié… o seu Benfica, minha veia!” Meu bisavô disse estas palavras atropeladas por um riso de alívio. “Benfica…é ocê?! Meu Deus, com essa barbona… nem o diabo ia sabê que era ocê, danado!” Um ano antes, quando meu bisavô foi trabalhar lá longe, ele não tinha uma barba daquela, seu rosto era liso como sua própria careca. Lá de onde voltou, ele não tinha tempo de se barbear e nem barbeiro que fizesse por ele. Queria era ganhar dinheiro. Depois daquele susto, foi uma risaiada até tarde da noite, comendo galinha velha e ele tomando umas pingas pra esquentar os ossos. Com certeza, ele dormiu com a “dona da casa”, como ele “ameaçara”. Nunca ele deva ter ficado tanto tempo longe de casa e a saudade já existia naqueles tempos. Desde então, ele nunca mais tirou a barba, como aparece em todos os seus retratos que cheguei a ver.

(Esta história faz parte de minhas anotações pandêmicas, “PUXANDO PELA MEMÓRIA”, que vai reunindo o que me lembro de mim mesmo e dos meus, tendo chegado ao meu conhecimento pela boca de um antigo parente que ainda mora lá pelas bandas da barragem, onde viveu meu bisavô “Benficão”)

.@opedrosantosde

 

10080cookie-checkUM ESTRANHO CONHECIDO

1 comentário em “UM ESTRANHO CONHECIDO

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.