Um conto, duas cidades
Um conto, duas cidades
Geórgia Alves
Quando Charles Dickens escreve “Um conto de duas cidades”, não deveria estar muito interessado em relacionar quantas figuras de linguagem empregava em seu primeiro capítulo do famoso Romance. Intitulado de “O Período”, tal capítulo começa assim: “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário – em suma, o período era tal medida semelhante ao presente que algumas de suas mais ruidosas autoridades insistiram em seu recebimento para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo da comparação”.
É isso, ou estou completa e ingenuamente obnubilada pela própria história do artista que viveu de rótulos em latas de graxa e porões de prisão acompanhando o pai perdulário como era comum na época, até chegar aos primeiros escritos sobre Pickwick em seus cadernos e se tornar um escritor bem sucedido. Talvez também me confunda e, naturalmente, queira desviar a atenção do leitor para a grande diegese que enxergo neste momento, o maior e, ao mesmo tempo, o menor de nossas vidas. O melhor, e o pior em todos os sentidos. O mais enriquecedor e, como não poderia deixar de o ser, o mais empobrecido e que indica a iminência de momentos ainda mais difíceis. Achamos que o pior havia passado. Foi no que acreditamos para sustentar nossos ossos sobre os sapatos apertados. Nos pondo de pé com forças inimagináveis para quem uma vez fomos e já nem nos recordamos mais. Nem nos reconhecemos mais.
Este tempo de luz e trevas, a estação onde o trem da História segue e vez ou outra estaciona é um tempo de tamanha semelhança a este inicio do romance de Dickens que não pude deixar de observar que nada mais é preciso dizer sobre nós, sobre a literatura, sobre Boz e sua Literatura. Seu irmão que não sabia pronunciar o próprio nome: Moses. Nada mais é preciso nos envolver senão a capacidade de entender que o período é tal qual “O Período”. Por isso, o gesto diletante. Sim, quase um brinquedo, um momento Dadá.
Tenho compartilhado meu tempo tanto mais com Marcel Duchamp que comigo mesma que o período é tal “O Período” em suas múltiplas e quase que infinitas figuras de linguagem. Inclusive, e por não revelar o dito, não dito e interdito, recurso da comparação. Antíteses, metáforas, metonímias, elipses. Todas estavam eclipsando a minha memória, até reencontrar a semiologia e Dickens. Um conto de duas cidades. E encontrar-me a mim entre ambas. A refletir sobre viagens do espírito, enquanto o corpo se locomove com dificuldade entre os cômodos da casa. Não é casa nem nada. Ainda que abrigue achados como “Um conto de duas cidades”. Ainda que caiba nela também um mundo inteiro poque habitada por livros.
Talvez devesse falar em inícios. Partindo do período em que começamos um tempo. Talvez devesse falar em datas e gêneros. Só que não. Estamos entre tempos e prefiro não. Porque não consigo pronunciar meu nome. Não consigo pronunciar o nome que reconheço do tempo que atravessamos. Talvez seja “O período” tudo que estava precisando. Antes de lembrar e voltar ao próprio nome. A um conto de duas cidades. Ao nome de uma e outra cidade. Enquanto estou a contar figuras de linguagem.
@georgialves1