SANTO E CAPITÃO DO MATO

SANTO E CAPITÃO DO MATO

Antônio Pimentel

As pessoas me chamam de Antônio. Pouca gente sabe que meu prenome é composto e carrega uma homenagem que me constrange. Sou Antônio de Pádua. Nasci numa família de muitos Antônios e uma Antônia. Somos frutos da devoção ao mais querido santo português, que fincou raízes por aqui na colonização. Um santo europeu acolhido por negros e índios. Nossas imposições, assimilações e antropofagias.

Minha mãe tinha na cabeceira um quadro com a imagem de Santo Antônio de Pádua. Uma herança do pai dela, meu avô Antônio Gomes da Costa, que o ganhou de sua mãe, Dona Felisberta, que o recebeu da vó dele, de nome perdido no tempo. Meu avô era negro, nascido em meados da década de 1880, ainda na época da escravidão. Não foi escravo, mas seguindo a trajetória do quadro chegaremos a negros alforriados e à senzala, ponto de começo de muitas famílias brasileiras. Minha mãe sempre fez questão de destacar que a moldura do quadro é a mesma e nunca teve cupim. Boa madeira, boa fé.

O certo é que Santo Antônio de Pádua, também de Lisboa, nos batiza e protege há mais de século. É, na imagem que acompanha a família, um homem jovem, carregando o Menino Jesus, transmitindo pureza e bondade. Meu constrangimento nunca teve nada contra ele. Só acho embaraçoso carregar seu nome. Muita responsabilidade e possíveis expectativas que um pecador contumaz não consegue honrar. Destaco a memória familiar, mas escrevo por outro motivo. Lendo um capítulo do ótimo e volumoso livro “Brasil: Uma Biografia”, das professoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (Companhia das Letras, 2015), encontrei uma história curiosa sobre meu xará santificado. Compartilho.

Até o início do século XVII, segundo as historiadoras, a caça ao escravo fugitivo era tarefa esporádica, a cargo dos feitores das fazendas. Era uma atividade amadora, feita pelo mesmo empregado que no dia a dia vigiava e punia os escravos. A coisa mudou, conforme explicam Lilia e Heloisa: “A partir de meados desse século, porém, o cargo de capitão do mato, com regras definidas e permissão para esquadrinhar preventivamente uma região com o propósito de evitar fugas, passou a ser reconhecido pela sociedade e fez de seu ocupante um personagem indissociável da escravidão”. Entre os séculos XVII e XIX, milhares de capitães do mato atuaram no Brasil. Muitos eram ex-escravos e se gabavam de uma competência específica: conhecer o comportamento do negro fugitivo. Um diferencial perverso.

O aumento das fugas de escravos e o surgimento dos quilombos foram associados pelos portugueses às piores aflições: agonia da morte, esconderijos onde viveriam demônios, e insidiosos pecados. Nesse ambiente de medo e tormento, eles resolveram buscar força e proteção em Santo Antônio de Pádua, concedendo-lhe a patente de capitão do mato. Seguem as historiadoras: “O mais venerado dos santos, na metrópole e na colônia, e celebrado como defensor da América portuguesa contra invasões estrangeiras, Santo Antônio, sem ser consultado, durante três séculos emprestou sua divina colaboração em favor da recuperação de escravos fugidos e da destruição dos quilombos”.

Capitão do mato, Santo Antônio?! Aí o senhor quebrou minha perna. Deixou os homônimos em situação difícil. Sei que foi à revelia, mas o senhor podia ter intercedido junto a Deus para demover os portugueses dessa ideia de jerico. São Benedito, o Mouro, não deve ter gostado nada dessa sua posição na hierarquia paramilitar. Gol contra, meu santo.

Pensando melhor, creio que o xará não aceitou a patente, não abençoou ou atuou em benefício de causa tão cruel. Seguiu sua trajetória virtuosa e se firmou como padroeiro de Lisboa e Pádua, das mulheres grávidas e dos casais. Tocou a vida com suas atribuições e símbolos: o livro, o pão, o lírio e o Menino Jesus. Melhor carregar o nome de um santo casamenteiro, aproximando corações apaixonados, e inspirador de festas juninas, com dança, canjica e quentão. Sempre unindo e alegrando. Nunca perseguindo e maltratando.

23/10/22

@antoniopimentelbh

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