Por que a urgência do Carnaval?
Por que a urgência do Carnaval?
Geórgia Alves
Carnaval urgia, urgia e ainda urge como nunca antes. Urgia em nossas retinas e urge em colorido desmesurado. Urgia e urge em nossas mentes a ideia de que não estamos “liberados do trabalho”. Em liberdade até por não ter como motivo da folga louvar santa ou santo, a pátria. Ainda que para alguns afortunados, Carnaval significa pausa.
Pausa para louvar nenhum lugar ao céu, por nenhum motivo “legitimado pelo bom funcionamento da sociedade”, é feriado. Aliás, a fantasia do povo “junto e misturado” mais que urgia. É. A ideia de que existe lugar, ou tempo, só por três dias, onde somos iguais, persiste na fantasia. É. Claro que nem mesmo no Carnaval a conta fecha. Tal equação, na real, nunca bate. Enquanto uns brincam, outros salvaguardam trocados, trabalham pelo título de reis e rainhas, trabalham também o ano inteiro para o reinado da folia. Que tem data de validade. Prescreve rapidamente, dolorosamente. Para o bloco dos “não quero dinheiro, só quero amar e sinto livre para não ser amado” dura um instante. Ô, brevíssimo reinado. Da hipnose, da mágica, da invenção do desejo. Nunca reinventaram o desejo como neste Carnaval. Talvez de quem quer ser visto, ser olhado, com a estranheza do “não te ligo espelho, espelho meu”. Por todo o ano a outra imagem repousava. Seja porque o Carnaval liberta das “obrigações”, e sem explicação se pode ser, não mais que de repente, engraçado. Ou bem mais que qualquer isso. Pode-se pendurar a plaquinha no pescoço “ando à procura de espaço”, justo naquele imprensado. Pode-se viver de enunciado utópico. Confesso que este ano nem fui ver cada espetáculo,. Somente o Marco Zero, na extraordinária abertura de apresentação dos “Anjos Tronchos”, ao vivo e a cores. E foi quando vi o moço que, fez como eu, de plaquinha, a dele dizendo: “nú-vem”, cabendo várias interpretações. Valeu a emocionante saída do Homem da Meia-Noite, do tradicional Pitombeiras, do Enquanto Isso Na Sala de Justiça. Eu acho é pouco e tantos “bom demais”. Este ano fantasiei de foliã que vai pra folia e pronto. Nada mais que o essencial. É fato que faltou aquela alegria descompromissada em mim, ainda não baixou depois de tantas perdas… Mas vai passar. Vai passar nesta avenida um samba popular e cada paralelepípedo vai…. Ainda sou mais lembrança e ato invenção que fato e impulso inato à alegria. Ato de ir só por ir e voltar logo para a segurança do lar. Se é que me entendem, fantasio ser alguém com disposição e saúde a enfrentar ladeiras e multidões. Ponto. Saudades tive demais. Fantasiada sem a bobeira de alegriazinha sempre necessária para acertar nos adereços e maquiagem. Mas fui, sobretudo para encarar o medo da trágica fragilidade que carrego e nunca soube bem o motivo. Por que temer as ruas em dias de Carnaval? O risco de assaltos, assédio, calor e qualquer outro tudo que cresce no asfalto todo dia tem. Celular roubado, por exemplo, no Carnaval é para quem não tem noção de que pode passar três dias longe dele. Todo folião sabe que tem direitos, pode e deve usar bem os cotovelos, dizer não às mãos bobas no instante mesmo em que se manifestam e por ali e acolá, no jeitinho de se adequar ao imprensado, vai. É bem verdade que os novos códigos despertaram espertezas maiores, tipo dar cabeçadas, ninguém me contou, eu vi! Diante do palco, o touro homem faz parecer casual… Das artimanhas velhas de aproveitar o ruge, pegar na cintura da mina e dizer qualquer coisa que pareça confusão mental: “Estava te protegendo”, na fila Indiana? Haja hoje. Com toda malícia ainda urge sair a ver de perto os Carnavais de Recife e Olinda, Bezerros e Nazaré da Mata. Urge não se conformar com o que as plataformas e canais mostram. Trabalhei quando o investimento em coberturas era de grande porte e, mesmo à época, saía com a impressão de que não é possível traduzir com fidelidade a aura que cobre estes dias. Não por ser romântica a ponto de ignorar o sol e o esforço das pernas. Como disse, é nesta hora que a saúde se põe à prova, mais que em qualquer outra data e celebração. No entanto, onde e quando seria possível ver Jesus de mãos dadas com Diabo Louro? Onde Mário e Luigi assumiriam, com amor, o beijo que atribui pontos a vida de ambos? Em que outra cidade do Brasil seria possível ver a vovó bolsonarista fumando como caipora, brincando o mesmo carnaval contra o qual fez tanta campanha? Dizem os compreensivos, “ah, mas isso foi antes, bem antes”. Já parece outro século só porque já é Carnaval. Sim. Graças a “Deus”, e pessoas como eu que não engoliram a corda do “não vou me vacinar”. E escolheram uma via mais bem pautada. Bem antes, havia a dúvida na população brasileira de que há uma chance remota dela ser feliz. Bem antes. É verdade, Carnaval não é um cachimbo, vovó. E isto foi antes dos clarins de Momo soarem no Bairro de São José, de onde saiu o maior bloco em linha reta do planeta! O galo preto, em sua Ancestralidade, anunciando um Marco Zero cheio de gente colorida, numa inigualável mistura de povos e raças, antes de minhas lágrimas rolarem diante do show de Caetano. Chorei durante todo repertório de seus frevos e marchinhas. E ainda tive até medo dos céus desabarem sobre nossas cabeças quando afirmou que o Carnaval da Bahia é uma homenagem grata ao gesto de Dodô e Osmar à presença de Vassourinhas, na pré-história do Carnaval da Bahia. “Porque atrás do trio elétrico só não vai qu já morreu”. Eu senti de novo a paz que só se encontra na gratidão. Na comoção existir, a certeza de estar viva transcende qualquer desejo. Enxerguei tudo aquilo que não via antes de chegar o Carnaval, agora, podemos ver e num súbito surto de clareza Béla Bartók. Maestro – que por estudos de música clássica e fusões de raízes folclóricas – legou o máximo recado da sabedoria popular. Nem mesmo o maestro saberia explicar como é possível ver tantas orquestras tocando debaixo de um sol particular desses como o de Pernambuco, em fevereiro e março. É verdade que uma moça beijou um repórter, inesperadamente. É verdade que o Galo da Madrugada mais.uma vez aconteceu sem intercorrência. Que o bonde do brega teve espaço antes reservado a nomes como Geraldo Azevedo e que Elba Ramalho ouviu mais o nome de Lula ao dela ser aclamado. Que para Alceu Valença, no coração do povo não tem pareia, que Tieta do Agreste, lua cheia de tesão foi a canção mais pedida que qualquer outra do homenageado da festa. E foram tantas atrações que é melhor vir no próximo ano, não faz sentido listar aqui. Vou encerrar com frase de sábia amiga, que, saudosa, de Portugal assiste, à distância dos olhos – não do coração – nossa brincadeira: “Carnaval em outro lugar? Não justifica”, disse ela. Para mim faz todo sentido.
@georgia.alves1