“Pirulito”

Capítulo 2; versículo 1

“Pirulito”

Jaque Machado

Fomos na venda cochichando, gargalhando enquanto dávamos os braços riscados com nossos nomes, como tatuagem de mentira, riscar a pele com caneta dói, aperta e vinca, mas encontrar a identidade também. Era segunda e eu trouxe uma informação que gerou uma ideia infeliz, tínhamos voltado do colégio, sétima série, época que passava o dia todo de uniforme, fui eleita pelas outras duas como “a compradora”, já era a CDF líder de turma, agora mais isso. Parecia que estávamos indo comprar drogas, era por causa do “proibido” detrás disso, do porquê.

“Me dá dois reais de pirulito.”, pedi, as amigas caíram na risada atrás de mim. Sabe que adolescente ri por tudo, o que desperta a desconfiança dos adultos, parece que olham com um misto de “me conta, quero rir junto”, o que demonstra um certo saudosismo da adolescência e pezar da pela vida adulta; ou, “criaturas mal educadas”, que traz à tona aquilo que precisam negar, o desprezo pela juventude que tanto lhes dá saudade. Crescer é rejeitar o passado para suportar envelhecer, é enjaular nosso pássaro azul.

Deveríamos chegar aos cem anos pedindo pela morte, mas não é assim, sempre a recusamos.

Oito pirulitos redondos e com sabor de morango, dentro um chiclete. Coloquei no bolso e corremos dali, paramos na esquina confabulando para a casa de quem iríamos. Escolheram a minha.

Que mal existiria em três adolescentes chupando pirulito?

Com as mesmas risadas entramos em casa, a mãe e o pai conversando na sala, não tivéssemos chegado assim, jamais teriam ficado desconfiados de nada.

Quando eu fiz dez anos comecei a juntar dinheiro, juntei tanto (meu cofre era uma caixa de sapato), que quando o real entrou em circulação e fui trocar as notas, valia uma fortuna. Comprei um rádio gravador portátil, desses que carregavam pelas ruas para dançar break ou hiphop, só que dos camelôs. Eu usava para gravar minhas histórias, músicas e ouvir Black Sabbath, que era um som que significava rebeldia, já que toda a família, exceto meu irmão que me ensinou a escutar rock”n roll, achava que era coisa de vagabundo.

Coloquei o radio a tocar essa banda, a música com o mesmo nome. Aumentei o som ao máximo e passei o trinque na porta, pegamos os pirulitos. Nosso ritual estava prestes a começar.

Claro que vocês não estão entendendo nada, precisamos voltar até às 7:15 da manhã do mesmo dia, enquanto aguardava o portão da escola abrir.

Eu tinha uma fixação em um rapaz e ele era o garoto mais lindo do colégio, olhos verdes, um cabelo liso, grosso, imenso e brilhante, e ele estava do outro lado da rua, costumava chegar cedo, eu também. Mas a minha intenção sempre foi ter mais tempo para encarar o menino, ele, era o horário do ônibus. O cara estava na turma dos repetentes, a guria mais linda da escola era apaixonada por ele, um rebelde, um metaleiro com olhar de modelo de revista. Acho que tinha essa fixação ou amor platônico nele desde a quinta série, e ano após ano vivia de olhar aquela criatura no intervalo, alimentando noites de suspiro no travesseiro. E eu nunca havia falado com ele, nem um “oi”, nada. E de fato era correspondida de uma maneira peculiar, porque o olhar dele era cheio de violência, eu nem sabia o que era isso.

Naquele dia em especial uma menina se aproximou do metaleiro, foram para um canto de uma casa que ficava na frente da escola e começaram a se beijar. Imaginem como fiquei…

Eu não senti nada! Só observei os dois ali, enquanto toda escola via o rapaz passar a mão na bunda da garota. Confesso que senti um pouco de inveja de tamanha liberdade, hoje vejo isso. Mas a outra menina, a mais linda da escola, perfeita, ela não gostou nadinha do que viu, bateu os pés e foi chorar na rodinha de amigas. O sinal tocou, eu e minhas colegas fomos para uma das mais entediantes aulas de português da vida. É… Eu odiava português naquela época, acho que era a cópia extenuante.

Longe da superfície calma de uma manhã de aulas naquela escola, um rastilho de pólvora iniciou entre alunos de boca em boca, fofocas no ouvido, bilhetinhos aqui e ali, até a hora do recreio: a L., a menina que meu amor platônico havia beijado, foi chamada de “mão na bunda”.

Se eu concordei com aquilo? Eu me senti incomodada, mas na época não entendia o que era essa incomodação dentro de mim, então só aceitei, para poder rir junto dos outros e não ser a nerd esquisita que sempre estava deslocada.

Na aula de educação física, nossa turma e a da L. se juntaram numa partida de voleiball. Ela estava com os olhos inchados e vermelhos e a boca rosada de beijar. Lembro que o corpo dela era como de uma mulher mais velha, seios lindos, durinhos e grandes, uma cintura fina, o rosto anguloso com o maxilar quadrado, olhos expressivos e pincelados de verde. Um cabelo liso e sedoso cheirando a Darling, que era famoso pelo perfume intenso. Quiquei a bola na frente dela : “vem pro meu time”, falei com cara de durona. Isso era um convite irrecusável. Nossa… eu era muito boa no vôlei e se tinha alguma atividade social para a qual me demandavam, era que ficasse como levantadora numa partida, meu time sempre vencia porque eu e minhas duas amigas mandávamos muito bem.

“Tá”.

Llembro que se ergueu sobre os joelhos e bateu a areia do abrigo… levantei a bola pra ela cortar uma quantas vezes, a L. pulou na rede improvisada e bateu na bola com força, ela estava com raiva. Toda vez era uma bola no chão, vantagem e ponto. Nunca fomos tão boas de novo como naquele dia. Pus no ar muitas jogadas para ela finalizar. Quando a L. pulava, os seios dela chacoalhavam, dançavam longe do corpo, ela erguia o braço de pele clara, tinha pelos nele, bem escuros, era como se o ar parasse ao seu redor só para que cortasse com perfeição.

Toda vez que fazíamos ponto, sorria para mim e batia na minha mão.

“Você pode jogar com a gente.”, falei segurando os joelhos e tentando colocar um ar para dentro.

“Minha turma é outra.”

“Eu sei…’, meu coração parecia que iria se estraçalhar todo enquanto hiperventilava.

“Foi uma pergunta!”, arfei, “Você pode jogar com a gente?”

Ela baixou a cabeça, era um não. Eu não tinha entendido que a turma dela era outra.

Fomos secando o suor adolescente enquanto os cabelos grudavam no pescoço e na testa, no caminho, tomada por um impulso, perguntei algo que jamais deveria ter perguntado em toda a minha vida e não sei até hoje porque fiz aquilo.

“Você já fez um boquete?”

Depois do silêncio veio um sorriso cheio de coisas: “Já…”, os olhos eram de surpresa, nem ela esperava uma pergunta dessas. Na escola sabíamos quem eram as meninas que já haviam transado, aliás, os meninos faziam questão de espalhar isso para se vangloriar das suas duas ou três estocadas antes de gozar, e algumas vezes, engravidando as meninas.

A L. era uma “transadora”.

“Como é?”, perguntei, emendando a segunda pergunta mais idiota da minha adolescência.

“É bom…”

“Não… nao quero saber se é bom, tô perguntando como se faz…”.

Ela ficou visivelmente envergonhada e desconcertada com a minha curiosidade sem pudores, estava só perguntando, como se quisesse saber como ela trançava o cabelo ou onde ela comprava o shampoo de venda.

Depois de grunhir sem conseguir encontrar uma resposta, a L., colocou o cabelo para trás da orelha, olhou para os lados e cochichou com uma voz aveludada, a boca encostada no meu ouvido. E eu… Escutei aquilo em câmera lenta, como quando colocava a minha voz em rotação 45 no rádio do camelô que comprei com meu dinheiro: “É só chupar, como se tivesse chupando um pirulito.”

Agora vocês sabem o que estava prestes a acontecer no meu quarto.

Sentamos em cículos com as pernas cruzadas como borboletas, ao som de Black Sabbath. Tínhamos oito doces e o combinado era chupar todos, sem morder para comer o chiclete, deveríamos salivar neles, um atrás do outro até acabar.

“No três…”, na contagem desembalamos os pirulitos e nos pusemos a chupar, como se fosse um pênis imaginário.

Na minha cabeça a imagem se formou cristalina: a de um pênis na minha boca e eu nem sabia como era um, mas na imaginação, mas minha mente achava que sabia… E só isso foi motivo para me fazer enjoar.

Admito que tentei colocar a coisa na língua e seguir as amigas ali na frente, que estavam lambendo e passando os lábios nos seus pirulitos. Mas, só vê-las fazendo aquilo me trouxe uma repulsa. Eu não conseguia.

A I. ficou séria, pegou o pirulito e enfiou na minha boca, “chupa! Trato é trato!”. Tentei ignorar aquela violência, mas cada vez que lambia, me subia uma arcada.

“Vai, põe na boca…”, novas ânsias, tão fortes que meus olhos marejaram. “Você não quer conquistar o princípe metaleiro? Quando crescer vai ser assim… Se chupar um pau também vai vomitar, sua fresca!”

Eu não sei se o meu pai ou a minha mãe escutou aquilo, ou, se foi o barulho das minhas golfadas, mas bateram na porta perguntando se estava tudo bem. Congelamos as três, os olhos estalaram, o coração voou.

Depois do intervalo de choque, cochichos. Os risos de adolescente. Eu não, não ri. A graça tinha sabor amargo, nem de morango, nem de chiclete.

A brincadeira acabou ali. Só que não… não estava tudo bem. Não esteve bem por uns bons anos depois daquilo. É por isso que na semana que vem vamos avançar um pouco no tempo, para falar de uma mãe-paranóia atrás de uma xícara perdida.”

@jaquemachadoescritora

 

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