Os Tormentos de Raimundão

Por Victor Fernando

Os Tormentos de Raimundão

-É sempre a mesma história: nascemos e quando menos esperamos, morremos. Vamos simplesmente vivendo, fazendo nossas coisinhas e nem notamos que a morte caminha ao nosso lado e a qualquer momento ela pode-nos agarrar em seus braços.

-Veja. Está pensador, meu amigo! – disse Túlio, dando uma gargalhada, enquanto colocava o corpo na maca e o levava à ambulância.

-Nessas horas de levar os corpos eu fico refletindo sobre a vida. Arre, homem, esse emprego é dos infernos. Minha mãezinha bem que avisava: “estude para não quebrar pedra”. E esses dias eu tô atarantado, sem conseguir dormir direito. Parece que dormir com o diabo.

-Isso é coisa do demo. Esse emprego de carregar gente morta é brecha para ele nos possuir – e fez o sinal da cruz. –  Você precisa de uma reza e dormir com o terço de baixo do travesseiro, minha mãe dizia que isso espanta os maus espíritos e te faz dormir melhor, porque é a santíssima que lhe guarda.

Depois desses serviços complicados, Raimundão voltou para sua casa, encontrar-se com sua mulher e filhos.

-Hoje aconteceu de novo – disse ele, colocando a colher na boca enquanto olhava fixo para a parede, com uma expressão séria.

-O quê? – Perguntou sua esposa, colocando a comida das crianças.

-Tive uma crise de ansiedade.

-Raimundão, quem disse que é hora? Os meninos estão na mesa e agora estamos jantando. Falemos nisso depois, de preferência depois das orações, que Deus nos dará forças para conversar sobre isso.

Ele continuou fixo para a parede, agora com um olhar cansado. O silêncio fez-se por alguns instantes, depois continuou, agora para o filho mais velho, o Renatinho.

-Renatinho, como foi na casa de seu amigo?
-Foi divertido. A mãe do Victor fez churros para a gente.

-Sabia que eu e o pai do Victor estudávamos juntos?

-A mãe dele contou. Ela disse que o senhor era muito valente e sempre defendia ele.

-Na época eu era jovem e tinha fôlego. Agora, não. – E tocou sua barriga, dando um sorriso de canto de boca.  Depois de uma pequena pausa, continuou para Túlio, mas o menino, com o prato de comida à sua frente, nem mais prestava a atenção ao pai.

E a conversa que se seguiu continuou nesse mesmo nível. Depois do jantar terminado, das louças lavadas e da oração feita, foram conversar. Foi uma conversa rápida, pois Raimundão insistia em não incomodar a esposa, que estava com um semblante cansado. Foi um ping-pong de casal. Amanda, sua esposa, aconselhava-lhe ir ao médico, mas ele recusava-se, asseverando que tudo isso era coisa de Satanás. Foram dormir, enfim. Ele não conseguia colar os olhos sem trazer à cabeça, vez ou outra, as horríveis imagens de sonhos anteriores. Uma atmosfera nevoenta, com vozes que ora gritavam, ora riam e vinham de lugar nenhum. Ele, perdido em meio àquele mundo em que fora jogado, corria por horas a fio. De repente, era jogado para trás em um puxão violento e dava conta que estava preso a uma corrente, que circundava a sua barriga. Perdido, atormentado pelas vozes e preso, ele começava a chorar. As vozes sessavam e vinha de longe um ranger de porta se abrindo, por onde ouvia-se uma pessoa falar: “prepare-se, Raimundo.” Era uma voz feminina, mas que se tornava masculina à medida que a frase ia sendo dita. Do meio para o final, a voz era de seu pai: uma voz estridente que o paralisava. Antes de qualquer coisa acontecer, Raimundão acordava de sobressalto e não conseguia mais dormir. Sua esposa, ao lado, de tão cansada, dormia feito pedra. Naquela noite ele ficou andando de um lado ao outro do quarto, sempre fitando o chão e as paredes. Não dormiu e foi assim para o trabalho: meio morto vivo. Mais morto e menos vivo.

Chegando na empresa e vendo aqueles corpos, teve um ataque de pânico:  seu coração acelerou e todo o seu corpo tremia. Ele sentia uma explosão em seu interior e todos os seus músculos estavam paralisados. Caído no chão, estático, os olhos atônitos, fixos no corpo que jaz na mesa.

-O que aconteceu? – Acudiu-o, seu amigo

Raimundão pediu água e logo após, foi advertido:

-Procure o padre! Isso é obra do Inimigo do Nosso Senhor. Já vi muito isso na minha igreja. Olha, se você quiser, eu levo você ao convento Nossa Senhora das Dores para expulsar esses demônios de você. Lá tem um padre amigo meu que pode fazer isso.

Naquela noite ele não dormiu. Em sua cabeça sempre vinham as desgraças que lhe estavam acontecendo. Em meio aquele quarto escuro, com sua esposa ao lado, mas que melhor que não estivesse, pois incomodava-se ao perceber que a incomodava, ecoava em seus pensamentos as mais sódidasideias, as quais mediatamente repreendia como bom cristão que era. “Amanhã vou direto à casa do Reverendo, rezar e pedir Redenção.” Aquela noite, fria, silenciosa e ao mesmo tempo tão barulhenta, passou como uma eternidade: um segundo valia cem anos. A atmosfera soturna agonizava Raimundão, tirando-lhe o ar e dando-lhe constantes náuseas, com as quais debatia-se durante horas, sem nenhum remédio surtir efeito. O sol já nascia quando decidiu ir à casa do padre. “Vou visitar o reverendo padre na sua casa”, disse ele a sua esposa. Ela assentiu por pura formalidade, pois apenas ouviu palavras, mas nada entendeu.

A manhã era clara como nunca e transbordava de felicidades. Aquilo tudo incomodou Raimundão. Toda as sensações de euforia e entusiasmos que tomava conta da manhã, os raios de sol que batiam no seu rosto, como que zombando da sua desgraça, eram como uma espada transpassando no seu peito. Sentia-se agônico ao ver todos passando, indo vindo, como se tudo estivesse bem em suas vidas e somente ele, de todas as criaturas da face da terra, estivesse em dificuldades. “Chega!”, ele pensou, já perto da casa do reverendo.

-Padre! – exclamou, jogando-se aos seus pés, rogando, implorando, suplicando e clamando. – Não durmo direito, padre. Todas os dias e todas as noites são agonizantes, pois me vem à cabeça os medos. – Sua declaração emocionou o padre, que, com lágrimas nos olhos, pegou Raimundão pelos braços.

-Meu filho – começou o reverendo – beba esse copo de água e acalme-se. – Suas palavras, mansas, eram um conforto para aquele coração agitado.

Raimundão contou-lhe tudo, de forma que o padre soube de cada detalhe mínimo do que se passava e até da sua vida mais íntima. Ele ouviu tudo atento. Começou:

-Seja paciente. Deus trabalha no silêncio e quando você menos esperar, esses sonhos sumirão. Essa é a prova que Ele preparou para você. Tenha fé, que Deus não faz nada à toa. Tudo tem um propósito. O Criador é justo e bom, nunca se esqueça. Vamos rezar um Pai Nosso. A meditação durou trinta minutos e depois o padre acrescentou, virando-se para o altar e pegando uma hóstia e um pouco de vinho:

-Coma esse pão e beba esse vinho, que são o corpo e o sangue de Cristo.

Saindo da igreja, Raimundão estava mais calmo e sentindo seu interior limpo e puro.  No caminho de volta à casa, passou por uma loja e comprou bombons de chocolate para toda a sua família. Ao chegar, abraçou seus filhos e deu um beijo em sua esposa, como nunca tinha dado. Pôde, enfim, aproveitar o resto do dia sem mais preocupações.  Foram ao parque, ao cinema e a um restaurante. “Louvado seja Deus!”, exclamava Raimundo, que agora podia ser chamado assim. O “ão” era a marca do quão desgraçado era. Enquanto esperavam os pratos chegar, olhava a família com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos. Terminada a refeição, voltaram a pé para casa.

Chegando, Raimundo banhou, escovou os dentes, orou e deitou-se. Pôs a cabeça sobre o travesseiro e dormiu. Nos sonhos, viu-se em uma praia deserta, jogado lá sem a mínima noção do porquê, sem nenhuma resposta. Olhava para o oceano e via uma onda que se aproximava e o engolia e o capturava para dentro da vastidão da ainda mais incompreensível profundeza. As vozes vinham novamente e a porta e seu pai e sua mãe. Acordou de sobressalto e começou a chorar um choro baixinho, que era para não acordar a esposa. Pelo resto do dia Raimundão não se levantou da cama, nem para beber, nem para comer. Nada o reanimava. Nada o tirava daquele poço que não sabia quem tinha cavado: “é meu destino…não! Isso fui eu quem fiz…talvez foram meus pais que não me educaram como era para ser…” Recusava a visita de quem quer que fosse.

Começou a devanear e conversar consigo mesmo em voz alta. Seus choros foram ficando cada vez mais estridentes até o momento de todos da casa desistirem dele e o abandonarem. Um dia, ao abrir a porta do quarto, deparou-se com uma casa vazia e completamente morta. Estava escura e silenciosa. Havia um bilhete em cima da mesa, escrito pelas letras da sua agora ex-esposa: “Desisti de você da mesma forma que você desistiu de si. Pode ficar com as roupas e a casa para você, não quero nada que aí está.  Durante esses anos todos, tentei te ajudar a sair dessa lama, com a qual, parece, você dança e rola. Em nenhum momento o vi procurar solução verdadeira, senão fraseologias de padres e médiuns, ou qualquer cousa que passasse placebo em sua ferida. Você recusou todos os meus conselhos e agora basta! Basta! Adeus, Raimundão! Adeus! Podia dizer-lhe que os sonhos são o seu inconsciente que clama por ajuda, já não podendo suportar a sua situação, mas você não acreditaria, como fez tantas vezes” Sentindo-se desamparado e sem mais sobra onde pudesse descansar a cabeça, Raimundão, seguindo os passou de Mainländer, levou ao cabo a própria vida. Assim como o poeta, dependurou-se com uma corda em volta do pescoço e pôs fim às suas desgraças.

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@viictusviana

 

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