OS MENINOS DO PREVENTÓRIO E OUTROS MENINOS.
OS MENINOS DO PREVENTÓRIO E OUTROS MENINOS.
Antônio Pimentel
A FEBEM/MG recebeu mais três internos. Rotina. Duas crianças e um adolescente, irmãos. Não guardei os nomes das crianças. O adolescente, com 15 anos, era o Luiz Carlos. Gravei seu nome por motivos simples: ele circulava mais, conversava por onde passava e ostentava uma particularidade que provocou rebuliço entre as equipes do Centro de Triagem e da Administração Central da Fundação, vizinhos no mesmo terreno. Luiz Carlos usava um short apertado, aperto que ressaltava um pinto enorme. Ele passeava pelos corredores e pátios com sua adormecida e volumosa genitália. Ganhou uniforme, ficou mais protegido, mas virou notícia. Quase uma lenda.
Luiz Carlos dizia que tinha vindo do preventório. Era sua referência de origem. Quando ouvi essa palavra, fiquei curioso. Fui pesquisar a procedência dos meninos. Eles vieram do interior de Minas, por ordem de um juiz de menor, a autoridade da época. Eram filhos de hansenianos. Foram apartados dos pais e criados no preventório. Pesquisei no dicionário: “Estabelecimento onde são tratadas preventivamente pessoas predispostas a certas doenças, como a tuberculose. Internato para crianças, filhos de leprosos ou tuberculosos, que são criadas separadas dos pais para evitar contágio”.
Minha experiência de trabalho na FEBEM/MG, nas décadas de 1980 e 1990, gerou um aprendizado severo: os internatos tendem sempre à perpetuação da apartação social. Nascem com vocação médica, preventiva, correcional, educativa, assistencial ou outra qualquer, mas se transformam em centros de confinamento e esquecimento. O que é provisório torna-se permanente. O que é profilático vira segregação.
Temos hoje no Brasil a medida socioeducativa de internação para o adolescente autor de ato infracional. Medida cercada de garantias, que nem sempre são cumpridas. O tempo de internação máximo para um autor de ato infracional é de três anos, com reavaliações obrigatórias a cada seis meses, no máximo. Mesmo com salvaguardas legais, insisto: internar é risco de dano, esquecimento e abandono.
No tempo do Luiz Carlos e seus irmãos, o juiz de menor expedia solitariamente, sem contraditório, uma carta de guia para a internação, quase sempre encerrada com seguinte frase: “Interne-se até completar 18 anos”. Trabalhei na direção da FEBEM/MG, em atividades de gerenciamento e assessoramento. Poucos casos de internos chegavam às minhas mãos. Só situações críticas. Acompanhei transferências para o Manicômio Judiciário, reencontros com famílias consideradas perdidas, desatinos, fugas e mortes. No geral, predominava uma acomodação à vida no internato.
Luiz Carlos e seus irmãos foram levados para o preventório. Os pais morreram. E o isolamento preventivo e temporário acabou permanente, até a falência da entidade que mantinha o preventório e o envio dos meninos para a FEBEM/MG. Uma vida institucionalizada. Caminho de muitos.
Saí da FEBEM/MG no início da década de 1990, depois de trabalhar sistematicamente para o fechamento de sua rede de internatos e a desinternação de crianças e adolescentes. Tivemos avanços, fechamos cinco grandes internatos, muitos internos foram desinternados. Processos complexos. O Estatuto da Criança e do Adolescente acabou com a internação aos magotes. Algum tempo depois, a Fundação foi extinta. Não acompanhei o destino dos meninos do preventório e de outros viventes dos internatos. Riscos, incertezas e nebulosidades.
Lembrei-me do Luiz Carlos depois de reencontrar, numa leitura, a palavra “preventório”. Brinco com histórias da FEBEM/MG, onde tive rica experiência profissional, mas não me esqueço dos absurdos que vi e das responsabilidades que tive naquela instituição. Os governos e a sociedade brasileira têm uma corresponsabilidade indelével com a prática de internar pessoas, durante toda nossa história. Crianças e adolescentes, doentes mentais, hansenianos, presos, deficientes físicos, grávidas, idosos, muita gente passou e ainda passa pelo ciclo perverso da internação: apreensão (ou condução familiar, médica, jurídica, assistencial e outras), triagem, rotulação, deportação e confinamento. Temos o costume de apartar quem nos incomoda. Péssimo costume.
Um internato à noite é o lugar mais triste que já vi. Vi de passagem. Não morei lá uma vida inteira.
@antoniopimentelbh
08/10/23