Obesidade em Camadas

.Tela: Ticiano – Vênus e Cupido

Por Fernando Balduino

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Obesidade em camadas

            Durante os mais de duzentos séculos de humanidade, a população média imersa estava – sem os refinos do açúcar, dos benefícios da cafeína e das qualidades do sal – na escassez e na miséria gustativa. Todavia, nos meantes do século XX, viera uma quadra de revoluções alimentícias, e a fartura tomou a ribalta como ostentação comezinha, fermentando uma espécie de cultura do excesso, típica dos marketings capitalistas. A figura, inclusive, dos versados na arte culinária ascende nas relações sociais: chefes são lembrados como pequenas celebridades, capazes de proporcionarem constantes folgas ao paladar; posto como destemperado e obrigatório o regímen da fartura. Mais, portanto, do que recondimentos à arte culinária, trata-se de uma nada sutil vileza consumista, que busca imediata saciação em petiscos – carnosidade bamba nas ordens da vida em sociedade.

            À ordem psicológica, sabe-se, correspondem as subjetividades – jamais preteridas, mesmo em ênfase da química cerebral e genética –, mas já insuficientes para abarcar as doses em tamanha magnitude; trata-se, pois, de um problema objetivo, relativo à ordem social: inadequações do homem pós-moderno à sociedade que ele mesmo produziu, ou ainda, dissolução mórbida dos trabalhos braçais e ofertas volumosas de pequenas bombas calóricas. Tal sorte é encarnada, por exemplo, nos hábitos nutricionais medidos do retrato demográfico da população dos EUA, arauto das filosofias de compra; mais que justas atenções às contagens calóricas, são povo que não perdoa rótulos, nem dos frutíferos nem dos aquíferos; e, porque não lhe falta informação sequer, resgatam as boas matemáticas para o cálculo de suas corpulentas saúdes. É sabido, entretanto, que o verso em números não vinga, visto que, em lanchões de todas as sortes, cerca de 40% dos adultos americanos são obesos, e, apostam à porta estudos, há de aumentar essa proporção.

            Mesmo ainda, com a conquista de tamanha disponibilidade alimentar, é resgatado, das longínquas plásticas gregas e romanas, o culto à perfeição física. Vê:que no momento da fartura, o culto é justamente à magreza quase transcendental (sendo a teleologia apenas interrompida pela impossibilidade material, cujo inimigo patente é a célebre e disseminada “barriguinha da prosperidade”). Fosse, a exemplo, Gisele Bündchen pintada pelas tendências formais de Ticiano, dirigir-se-ia imediatamente a um spa, na busca de rigorosas privações regidas por métodos questionáveis de emagrecimento. A implicância, inclusive, com as dietas – dos lipídios, dos carboidratos, das frutas, das sopas, do luar, da perseverança… – esbarram os gordos com a ‘falta’ na virtude da vontade, e segue frustração compensada pelos movimentos orais: espécie de dédalo crítico à estética prática, no qual estão presos todos os usuários contumazes da Coca-Cola.

             Demais, a fartura – caríssima herdeira de esperançosas bocas de outrora – chega ao baile da alvorada tecnológica junto às supracitadas consequências dum maduro American Way of Life, os quais, somada à banalidade do ideal estético, cantam junto um grande hino e popularíssimo da contemporaneidade…

cause we’re living in a material world
And I, I’m a material girl . . .

 

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