O SUMIÇO DA PIADA.

*Ilustrações: Sig, do Jaguar, e Baixim, do Henfil, expoentes do deboche nacional.

O SUMIÇO DA PIADA.

Antônio Pimentel

Ia escrever a morte da piada, mas evitei perspectiva tão trágica e radical. A piada sobrevive. Anda sumida, mas está por aí. Vive à espreita de oportunidades para entrar em cena, debochar e fazer rir. Sinto sua falta. É o meu mote de hoje. Gosto de resgatar os causos da minha família. Já contei vários. Muitas vezes, comentei sobre o desaparecimento das rodas familiares de conversas, compartilhamentos de acontecimentos e invencionices. É uma perda social importante: convivências, transmissão oral de cultura, educação doméstica, exercícios de imaginação e fantasia.

Destaco outro sumiço: as rodas de contadores de piadas. Perdemos esse espaço de intercâmbio, tagarelice, gozação e diversão. Cresci ouvindo e contando anedotas. Reconheço que fui melhor ouvinte. Nunca tive fluência, capacidade de encenação e ritmo de bom piadista, um artista popular. Hoje, o costume e o personagem vivem riscos de extinção. Leio zombarias escritas, poucas e sem a graça da narrativa presencial. Vejo e ouço pilhérias na televisão. Nada que se compare aos grupos de adolescentes e jovens que, no pátio da escola ou debaixo da luz do poste da rua, contavam as piadas mais cabeludas e escrachadas.

Por onde anda o Joãozinho, terror das professoras e Mariazinhas? Aquele menino que ouviu a professora dizer que os indianos consideravam a vaca um animal sagrado e acrescentou: “Mas o touro não concordava muito com isso, né, professora?” O mesmo moleque que vinha com uma galinha debaixo do braço e o vizinho perguntou: “Vai comer galinha hoje, Joãozinho?” E ele declarou: “Já comi”. Ainda na escola: “Quando foi, Joãozinho, que os índios comeram o bispo Dom Pero Sardinha?” “Uai, professora, eu nem sabia que ele era bicha!” Cito intervenções suaves do desbocado petiz.

E o bêbado, sujeito sem nome, sempre pronto para atrapalhar missas, comícios políticos e festas familiares, cadê o inoportuno? Manoel e Joaquim, personagens clássicos das piadas de português, deram a volta por cima há muito tempo. Apalermados nas gozeiras nacionais, eles nos passaram memorável rasteira com a Revolução dos Cravos, em 1974, quando acabaram com a longa ditadura salazarista. E nós, brasileiros “espertos”, seguimos anos dominados pela ditadura militar. Joaquim e Manoel riram primeiro e melhor. Cadê o sagaz minerim, a beata fofoqueira, o corno ateu, a terrível sogra e a prostituta libidinosa e sem papas na língua? Estamos perdendo essa gente valorosa. Até o falante e inconveniente papagaio sumiu.

Outro desaparecido há mais tempo é Bocage, poeta português, representante do arcadismo lusitano e autor de sátiras contra seus contemporâneos. No Brasil, equivocadamente, ele foi associado a piadas toscas e indecentes, tornando-se personagem central das anedotas mais exageradas da minha juventude, com peripécias sexuais, exuberâncias anatômicas e escatologias. O Bocage abrasileirado era famoso pelo tamanho descomunal do seu pinto, um jeito singelo e recatado de tratar seu temido falo. Na verdade, o bicho merece nome mais contundente e firme. Nas piadas, um rapaz atrasado para uma orgia viu uma enorme corda despencando pela janela e subiu por ela até o andar desejado. A corda não era bem uma corda. Tenho dito.

O que aconteceu com a piada? A vida mudou e ela mudou junto. O mundo do trabalho sofreu acelerada transformação e convocou a participação de todos integrantes das famílias. Mulheres, adolescentes e jovens foram à luta. Isso diminuiu nossos estoques de tempo livre e ócio debochado. A violência nos afugentou da vida rueira. As dinâmicas familiares e de vizinhanças mudaram. A televisão nos manteve cativos e fez esmaecer as conversas de esquinas. A famosa “turma da rua” foi desaparecendo. Internamente, as rodas familiares de causos escassearam. Depois, a internet e as redes sociais aprofundaram esse encasulamento. O mundo digital tomou conta do pedaço. A oralidade presencial foi substituída por teclados, vídeos, emotions e likes.

Outro fator avassalador é a emergência do enfadonho mundo “politicamente correto”. Passo longe dessa besteira e chatice. Reconheço, no entanto, que as caçoadas antigas exalavam preconceitos e discriminações. Eram cruéis com negros, índios, judeus, mulheres, gays, pessoas com deficiência e estrangeiros, particularmente os portugueses, uma revanche histórica. As piadas faziam circular e ajudavam a consolidar grosserias e violências contra muita gente.

As mudanças nesse terreno são avanços civilizatórios. É fundamental banir o preconceito e a discriminação de todos os cantos da sociedade. Mas não é boa coisa o sumiço da piada, mesmo as mais picantes e debochadas. A capacidade social de zombar de tudo e de todos precisa sobreviver. Temos aqui um terreno delicado. Como manter a aptidão comunitária de caçoar e, ao mesmo tempo, evitar agressões? Acho que o caminho é a educação e o aumento das nossas competências pessoais e relacionais: discernimento, empatia e convívio social respeitoso. Desafio complexo, mas viável. Para encerrar, uma piadinha inocente, com pequena dose de exagero e boa presença de espírito. Tenho saudades dessas esculhambações.

Era um rapagão mimado, cheio de nove horas. Incomodado, foi ao médico.

-Doutor, eu estou com um problema no meu pipiu. Ele tá doendo muito. O senhor pode dar uma olhada no meu pipiu?

-Pois não. O senhor entra naquela sala e tira a roupa.

Quando o médico foi ver o rapagão, levou um susto. O sujeito era bem servido, tinha uma estrovenga enorme. O médico gritou:

-Enfermeira, traga rápido um balde de água benta!

-Água benta? – perguntou o dono do pipiu. Para quê, doutor?

-É pra batizar esse ajumentado pipiu com o nome correto, seu fedapê!

25/09/22

 

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