O MESMO SANGUE NAS VEIAS
O MESMO SANGUE NAS VEIAS…
Pedro Santos
Saio um pouco da história de minha família para falar de uma outra… a de minha esposa (mas que se tornou a minha também). Meu sogro, Djalma Albino da Mata, foi um grande goleiro do futebol itaunense, que não cheguei a ver jogar, mas quem o viu garante isso. No final dos anos de 1960, dizem que chegou a tentar um lugar no “Cruzeiro de BH”, no tempo em que um jovem chamado Raul Plasman (o arqueiro da camisa amarela) já era o titular daquele esquadrão fenomenal de “Tostão, Dirceu Lopes, Piazza e cia”. Ficou em “Belô” por três meses, mas a saudade da família, da namorada e a falta de dinheiro o trouxeram de volta aos gramados locais. Dizem que era um guarda-metas arrojado, que voava como um gato sob a cidadela. Minha mulher conta que ouviu de sua avó, a “Dona Tide”, mãe de meu sogro, que ele chegou a perder a memória temporariamente, ao bater com a cabeça na trave para evitar a marcação um gol. Se eu não presenciei essa parte de sua vida, teve uma que eu estava presente…e fui quase uma “testemunha ocular”. Mas para dizê-la, tenho que falar novamente de um outro momento do qual eu não estava por perto… foi quando o pai de meu sogro abandonou a sua família. Deu-se há muito tempo, possivelmente na década de 1940, deixando para trás a sua pequena turma doméstica: a esposa e dois filhos, sendo um meu sogro e o mais velho, chamado Djair, que já morreu. Djalma era tão pequeno quando ele se foi, que imagino nem se lembrar da figura do pai, apagada em sua mente por sua precocidade e pelos traumas do tempo. Vicente Albino da Mata… este era seu nome e não era casado certinho no papel com Dona Tide. “Partia em busca de trabalho”, foi o que teria dito quando saiu de Divinópolis, falando que voltaria assim que conseguisse algum dinheiro… mas não voltou. Passado algum tempo, sem notícias do patriarca, a família mudou-se para Itaúna, perto dali, onde a vida seguiria em frente. A mãe casou-se novamente e teve outros filhos com seu novo companheiro, que acolheu com carinho seus dois primogênitos. Surgiram relatos que davam conta de que o “seu Vicente”, alguns anos depois de sua partida em busca de trabalho, teria voltado a Divinópolis… mas não encontrando mais sua família por lá, não teve coragem de procurá-los em Itaúna. E assim… ele se foi novamente… e então para sempre. Dito isso, agora posso contar o que presenciei no desenrolar da história dessa família. Uma antiga parente de meu sogro, sua “tia-madrinha” , entrou em contato pedindo a presença dele em Divinópolis, onde morava, pois reservava-lhe uma surpresa… mas sem dar detalhes a respeito, rogando para que ele fosse levado até lá como se fosse uma visita casual. Minha esposa desconfiava que poderia ser o reaparecimento de seu “avô sumido”…a expectativa era grande! Confesso que eu mesmo fiquei curioso em saber o que nos esperava naquele encontro. No dia marcado, lá fomos nós: eu, minha mulher, minha sogra, “Dona Fia”, e meu sogro… rumo à cidade de Divinópolis, num endereço de um bairro chamado “Espírito Santo”. Até ali (imagino) que meu sogro não desconfiava de nada, seria apenas uma visita cordial a um pessoal que gostava muito dele. Por volta de três da tarde a gente já estava em um apartamento dotado de um terraço, tomando um café e conversando com algumas senhoras… dentre elas a tal madrinha, a artífice daquele esperado momento. Os assuntos já se repetiam, quando então se ouviu a chegada de um carro… na escada alguns passos se atropelavam, subindo em nossa direção até o terraço onde estávamos. Enfim, a porta se abriu… e entrou um homem grande, do tamanho de meu sogro… mas muito jovem para ser o seu “pai desaparecido”. Mas nas veias daquele desconhecido que ali chegara corria sangue dos “Albinos”: era ele um irmão do “seu Djalma”, nascido lá em Santos, no estado de São Paulo, onde o pai de ambos se estabelecera e formara outra família. “Ô Djalma , este é seu irmão, Mário!”… esta revelação saiu dos lábios tremidos e risonhos da “fada madrinha”, que era tia dos dois, sendo irmã do avô de minha esposa. Um irmão olhava o outro como dois estranhos… mas acho que até se abraçaram, meio sem jeito ainda… mais o meu sogro, que parecia pálido e surpreso diante daquele novo parente, sendo que este até se soltava mais, com seu sotaque paulista. Um filme triste deva ter passado na cabeça do pai de minha esposa, ao conhecer um irmão que teve o que ele não pôde ter, com a presença de um pai, desde a infância, na juventude… e por muito tempo. Quando o “Tio Mário”, talvez num ato de descontração e receptividade, resolveu tomar uma “pinguinha”, reparei que minha esposa e minha sogra ficaram preocupadas, temerosas por meu sogro, que deixara a bebida já havia algum tempo por motivos de saúde. “Um tio daquele aparecendo agora… poderia até induzi-lo a voltar a beber”… era um receio que parecia transbordar nos olhos delas. De repente, o novo tio e sua esposa buscaram no quarto um notebook com muitas fotos do pai… com muitos momentos no litoral paulista, desde quando ele fora guarda municipal na baixada santista, com seu impecável uniforme… e outras passagens vividas com ele até os seus derradeiros dias de vida. Não me lembro de meu sogro acompanhando aquela exibição de imagens… devia ter outras na mente, as suas próprias, com a mãe e o irmão Djair… abandonados, enquanto o pai ausente cuidava de um “outro irmão” que ele nunca imaginou existir. Na nossa volta para Itaúna, também não me recordo de um homem eufórico no banco de trás do carro, ao lado de minha sogra… “seu Djalma” parecia ainda meio em choque. Antes, nos momentos finais na casa da madrinha, visitas de lado a lado foram prometidas para momentos oportunos. “Tio Mário” queria conhecer o quanto antes os demais membros de sua nova família. Não demorou muito, ele e sua esposa vieram mesmo e foi uma festa! Principalmente para seus novos sobrinhos e sobrinhas, que já tratavam aquele tio bem humorado como se já o conhecesse desde o tempo em que o avô caira no mundo. Até meu sogro já mostrava-se mais acostumado com o novo irmão. E o Tio Mário gostou tanto de conhecer aqueles novos parentes, que foi além… tratou de comprar uma casa pelos lados de cá, escolhendo a cidade de São Gonçalo do Pará, situada a meio caminho de Divinópolis e Itaúna. Já não era novidade que ele gostava de fazer o que o meu sogro não podia, ou seja, beber… por isso o primeiro “Natal” com sua presença não foi na casa do “seu Djalma”, optando-se por fazê-lo em minha casa, que tinha um “chuveirão” no terreiro em condições de aplacar os seus eventuais pileques. E correu tudo bem para bêbados e abstêmios! E essa receptividade de seus novos consanguíneos parece que plantava no coração de “Tio Mário” algo além de simplesmente morar por aqui…ele queria viver por aqui. Já se comentava que tinha planos de montar um restaurante na região, deixando em outras mãos o jornal que ele e a esposa dirigiam lá em Santos, o “Jornal do Síndico”, especializado em assuntos de condomínio. Até então, ficava de lá pra cá, indo a Santos, voltando a São Gonçalo do Pará, vindo a Itaúna… naquele vai e vem… mas, infelizmente, não daria tempo dele por em prática todos os seus novos projetos. Um infarto fulminante o matou. Não cheguei a dizer, mas ele tinha também alguns parentes em São Gonçalo e lá mesmo ele foi enterrado. Foram mais de cinco anos de convívio com a família de seu novo irmão Djalma. Desconfio que ele nunca tenha querido saber de seu outro irmão morto, o Djair, e nem da família deste.. Acho que ouvi isso de alguém, não me lembro. Não tenho certeza. Sinceramente, também não sei medir o sentimento que sua morte causou em meu sogro… nunca conversamos sobre isso…talvez tenha sido o complemento de uma tristeza que começou quando deu-se pela falta de um pai em sua vida. As irmãs de minha esposa foram as que mais sentiram a partida do “Tio Mário”… saudosas dos muitos momentos festivos com ele… com muito churrasco, cerveja e uma cachacinha da boa, claro! Depois disso, sua esposa, que se chamava Mila, como tudo indica retomou sua vida no litoral. A madrinha de seu Djalma, a responsável pelo reencontro, morreu em 2018. É possível que seu esforço não tenha ido além da apresentação de um irmão ao outro desconhecido… o que já foi memorável, mas não deve ter sido suficiente para preencher o vazio que o pai do meu sogro deixou…há muito tempo… com sua partida sem volta.
(Esta história faz parte de minhas anotações pandêmicas, “PUXANDO PELA MEMÓRIA”, que vai reunindo o que me lembro de mim mesmo e dos meus).
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