O Éden revisto na Várzea do Recife

O Éden revisto na Várzea do Recife

Geórgia Alves 

Leiam, mais uma vez, vejam com delicada atenção, cada palavra no título deste texto. Éden, Várzea, Recife e revisão. Não nessa ordem. Este é o lugar de observar finamente o que cada pedra queira nos dizer. Recife, como sabem, vem de arrecifes. Pedras marítimas que se moldam ao bel prazer da água salgada do mar. Várzea é um lugar entre as matas e as águas que escoam inundando pequenos acúmulos de terra. O encontro do mar e das águas doces dos rios extravasando. Varzeando pelo sólido lugar onde há terra. Onde a Terra-Mãe nos recebe em areias menos abertas, mais reunidas e sólidas. A Várzea é um bairro da cidade do Recife. Recife que sempre se quis capital de um mundo onde toda Literatura da Humanidade pode ser revista.

Sim, Francisco Brennand foi um filho que sentiu tantos impactos das divergências do mundo.

O pai herdara, como um homem inglês, terras e terras no Novo Mundo, de um pai oleiro e fabricante. Pai do pai que viera de uma Revolução Industrial e tendo máquinas e fornos a dispor, vindas de navio, fez dele herdeiro do avô, pai de do filho, primo do filho de pai, a quem dividiria as vastas terras da Várzea com irmão e um primo. O lugar herdado pelos Dois Irmãos, Francisco transformou em Éden. Cosmologia revisionista da História do Mundo. Da Olaria do avô, da fábrica do pai, fez a Oficina de Cerâmicas Brennand.

O labor do oleiro, em Francisco, permitiu um ovo. O filho de Brennand, herdeiro das terras daqui, encontrou a paz quando abriu na Terra-Mãe espaço também para o lugar do surgimento do artista.

A Oficina Brennand é um espaço aberto e impossível de medir em léguas inglesas. Até onde a vista alcance, de cabeça, posso dizer aqui de uns vinte hectares por onde as andanças dos primados descendentes lotearam.

Lugares de matas onde habitavam povos originários e onde o homem vindo do outro continente abriu território para fabricar cerâmicas, tijolos, argamassa de uma cidade nova. Das cidades vizinhas de um mundo novo. Um dos filhos, herdeiros da terra, casou com Débora e tinha um amor transcendente pelo labor de oleiro. De modo a dar para cada peça produzida um acabamento vitrificado. De areias finas. Esse acabamento se transformou no ovo de Colombo dos Brennand. E Francisco, sempre ele, um menino rebelde, que é provável desse menos valor à cultura do branco que, a exemplo do primo, colecionou obras de arte ao lado de armas brancas, quis dizer pelas mãos e pelo barro o que havia de ser revisto.

Tinha para isso amigos escolhidos. Há na galeria onde estão expostos alguns dos quadros da Cosmologia de Francisco, uma foto ao lado do amigo Ariano.

Durante o passeio pela Oficina Brennand, primeiro se é recebido por um café que tem sua porta de entrada adornada pela cerâmica Brennand em sua expressão maximizada. As mesas de vidro deixam nítidos os pilares também esculpidos e transportados dos fornos da Oficina até ali.

Um café é necessário para que o visitante desatento não perca o melhor da narrativa exposta ali, criada por força e forma do barro. Barro que empresta lugar às formas anímicas e míticas, de guepardos, onças pintadas, pássaros, tartarugas, serpentes – sobretudo serpentes e um feiticeiro – que guardam o pequenino e ao mesmo tempo gigantesco se comparado a outros, ovo primordial. O ovo dos primórdios, dos povos primitivos, guardados por bichos e chifres, também seres míticos. O ovo da Terra-Mãe – primeiro painel que recebe no lugar sagrado da Criação de Francisco, a visitante, o visitante.

Uma frase do amigo Ariano Suassuna, que em um parágrafo orienta os incautos, em frente à Mãe-Terra, hoje está encaixotado. Porque fui aluna do Mestrado da mesma Universidade Federal onde ensinou Ariano, sei dessa frase de cor: Fiéis ao sonho da nossa juventude, dentro das minhas medidas, venho fazendo o que posso, e ele ergueu em sua oficina um monumento imperecível, no qual as gerações que vão nos suceder poderão pelo menos enxergar a face do Brasil verdadeiro e profundo, o Brasil ‘que poderia ter sido e que não foi’”. (1997).

Frase extraída de uma carta – ah, o tempo das cartas… – intitulada “Brennand e eu” que Suassuna inicia com frase de Bóris Pasternak: “É preciso cerrar os dentes e compartilhar a sorte do nosso país”. Frase do tempo em que “a Rússia experimentava a opressão violenta, aberta e declarada do Stalinismo”. Ariano ainda escreve: “Entretanto, a impostura, a opressão hipócrita do Capitalismo, a ditadura do consumo, a vulgaridade e do gosto médio imposto como modelo através dos meios de comunicação de massa, essa ditadura branca está fazendo algo talvez (sic) pior do que oprimir a pátria de Gogol e Dostoiévski”. Que saudade das aulas do Mestre… Ainda dentro de uma caixa, sua frase e suas aulas ecoam em mim. O Páteo da oficina, ladeado pelo Estádio, pela antiga fábrica – o filho que modifica o nome – há o centro do universo onde a cúpula de vidro azul e pássaras Rocca.

As mães que atiraram do alto pedras contra os navios dos invasores da ilha de Madagáscar onde guardavam seus ovos. A cúpula que deixa passar a luz do sol revista em tons azuis é ladeada por figuras mencionadas aqui. A onça pintada, que só em terras americanas se encontrava, também tartarugas que conduziram pelas águas e frases de Jorge Luís Borges e Ernest Rutherford. Os ídolos da Física e da Poesia reunidos onde a frase central diz: – em resumo pela forja do fogo no barro –: “Tudo está em constante movimento, o mundo passa por criações e destruições perpétuas, porque tudo flui, tudo muda” (Heráclito de Éfeso).

Precisaria de muito muito mais que mil palavras para descrever o espírito criacionista que as obras de Francisco Brennand guardam para quem busca abrigo nas formas esculpidas pela mão destes homens inspirados pelo sonho de recriar o mundo a partir de uma Literatura própria, uma literatura feita do barro e das mãos humanas, do fogo de um forno fabricado pela inteligência humana. Muito muito mais que mil palavras para descrever que Francisco também deu ao jardim pós-Éden, com sua passagem estreita, o nome de Burle Marx e uma figura de um Francisco santo. De Vênus e Apolo, a Adão e Eva grávida. Depois do ovo, um grande e estreito portal dá passagem ao jardim de criaturas afeitas ao lugar do paraíso. Sim, afeitas, porque é preciso um espírito elevado para olhar com olhos de paz. Olhos de amor profundo à terra e à própria liturgia. Este caminho levará ao peso de uma bigorna gigante instalada diante do telhado que abriga o dedicado que estuda a palavra e a forma, e a forma a expressão da Arte por excelência. Enquanto a matéria passivamente receba a inspiração do Artista. Às vezes não tão passiva, mas ativa em suas cores e manifestações diante do fogo.

Há cores expressas nas obras e mesmo reproduzidas na paleta de cores das telas de Brennand. Há no lugar mais adiante um Teatro dedicado a Débora. Onde por estes acasos encontro Neném Brennand e não resisto a invocar em sua forma o nome da grande Poeta de todos e maiores silêncios. O silêncio do amor a um homem, aos filhos, à criação. À Poesia feita deste amor que legou a oficina tão inspiradora. Patrimônio da Humanidade. Éden que brota da Várzea. O Éden na Várzea do Recife.

 

@georgialves1

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