O CASO ADENOR
Ilustração – Leize de Sá
O CASO ADENOR
Sidney Nascimento
A campainha toca, Arlindo levanta-se de sua cadeira executiva, dirige-se até a porta de seu escritório e recepciona calorosamente o seu novo cliente. Abraça-lhe efusivamente, oferece um café e o acompanha até a sala de reuniões: uma pequena sala com uma mesa redonda e três cadeiras.
– Muito obrigado por procurar os meus serviços! –
Arlindo sorri feito uma criança que acabou de ganhar uma bicicleta. O cliente, sisudo, lhe entrega um cartão de visitas onde está escrito “Adenor Borges – gerente contábil”.
– Eu bem que gostaria de lhe dar o meu cartão, mas no meu ramo de negócio seria produzir prova contra mim mesmo, acho que o senhor me entende.
Disse isso e gargalhou. A risada de Arlindo era digna de ser vista e ouvida. É um homem alto, com um metro e noventa, mais de cem quilos, aquele jeitão de ex-atleta. Ele ria e o seu corpo balançava ao som de sua risada. O seu bigode farto tomava uma feição diferente ao contornar a sua risada. Quando ele está sério, o bigode lhe dá um ar sinistro, ao sorrir assume um caráter cômico, quase infantil. Após rir com fartura, disse nostalgicamente ao cliente:
– Meu amigo, confesso que nessas horas eu tenho saudades do tempo da advocacia, poder entregar um cartão de visitas ao cliente, ter um site na internet, um perfil nas redes sociais, mas o ofício de matador profissional me impõe a discrição. Conto com a compreensão. Adenor faz uma cara de espanto.
– O senhor era advogado antes?
– Pois não fui!
Arlindo disse isso e sorriu genuinamente.
– Posso perguntar o porquê da mudança profissional tão brusca?
– Oshi, claro que pode, eu sempre me divirto ao contar dessa peripécia em minha vida. Eu tava saindo de uma audiência e aí, o ex-marido de minha cliente virou pra mim e disse “o senhor não passa de um jagunço erudito”. Aquela frase ficou martelando a minha cabeça por dias e aí me dei conta que eu sempre quis ser jagunço. Daí, larguei a advocacia e me tornei matador profissional.
Riu como quem contasse uma aventura juvenil e inocente.
– Mas, me diga, em que lhe posso ser útil, sou seu criado.
– Quero que você mate a vaca de minha mulher!
Adenor soltou a frase com o rancor característico dos infelizes. O riso aberto de Arlindo se fechou, com ar sinistro, ele respondeu.
– Posso matar a sua mulher, são vinte mil reais, mas, preciso ter certeza que ela merece morrer. A contratação comigo funciona assim, se eu não concordar com a morte dela, morrerá você que veio encomendar o enterro alheio.
Arlindo lança um olhar aterrorizador para Adenor que se encolhe na cadeira.
– Como assim, quer dizer que se eu não te convencer do assassinato de minha mulher, quem morre sou eu? Isto não é justo!
Disse Adenor com a voz miúda.
Arlindo gargalhou e disse em tom de galhofa:
– Meu amigo, o senhor procura um matador profissional e vem me falar em justiça? Se eu quisesse continuar no ramo da justiça não teria largado a advocacia, não é mesmo? Larguei a justiça para virar justiceiro. Espero que breve o senhor entenda a diferença entre uma coisa e outra. Adenor fez menção em se levantar e ir embora, Arlindo, já acostumado com este tipo de reação de seus clientes, calmamente retira a sua pistola do bolso do paletó e a coloca sobre a mesa. Adenor voltou a sentar-se e respondeu.
– Ok, entendi o seu ponto de vista, vou explicar o porquê de eu querer a minha mulher morta.
– Calma lá, meu amigo, primeiro o meu pagamento (disse Arlindo contrariado).
– Como assim, o pagamento não é depois do serviço executado?
Adenor faz cara de insatisfeito.
– Poooorra – a voz sai aguda, estridente, descombinada com o tamanho daquele homenzarrão – se eu quisesse continuar a trabalhar ad exito, eu continuaria na advocacia, caralho! No meu método dialético de homicídio, seria um paradoxo deixar a cobrança para depois da execução do serviço.
– Como assim, paradoxo?
Adenor respondeu quase gaguejando. Arlindo se levanta da cadeira e deixa a arma sobre a mesa, dá as costas ao seu cliente enquanto prepara o café e explica. Adenor olha a pistola e fica tentado a pegar a arma, mas convence-se que aquela deve ser uma armadilha para os incautos, além do mais, não saberia manejar uma arma de fogo. Como era esperado por Arlindo, a reação de Adenor ficou apenas na imaginação dele.
– Meu amigo, eu lhe expliquei o meu método dialético de homicídio, se o senhor não me convencer a matar a sua mulher, meto a bala no senhor só para não passar vontade (não contém o riso e gargalha novamente). Agora acompanhe o meu raciocínio, suponha que eu resolva lhe matar, como é que eu vou receber a caralha dos meus honorários após matar o meu próprio cliente? Poooorra! Já vou logo lhe avisando, não tenho paciência com gente burra, se ainda não lhe matei é porque não trabalho fiado!
Virou-se para o cliente e riu do jeito assustado de Adenor.
– Entendi (responde Adenor, conformado), vou fazer a transferência pelo aplicativo, por favor, me passe os seus dados bancários.
Arlindo entrega um bilhete com as informações pedidas
– Pronto, já está feito.
Adenor mostra o comprovante da transferência na tela do smartphone. Arlindo sorri satisfeito e agradece.
– Pois bem, agora sou todo ouvidos para os seus argumentos homicidas.
Sorve o café enquanto o cliente desabafa.
– Então, a minha mulher me evita há seis meses, tá sempre com cara de tédio quando eu chego perto dela, e de uns tempos pra cá começou a ficar mais vaidosa e usar o celular longe de mim, tô desconfiado que ela tenha outro.
Arlindo interrompe a argumentação do cliente bruscamente.
– Meu amigo, o senhor me pede para executar um crime impossível. Acompanhe o meu raciocínio.
Cofia o bigode lentamente antes de explicar o conceito ao cliente.
– Para ela ser a sua mulher, o senhor tem de ser o homem dela, é uma relação bilateral, e para o senhor ser o homem dela, ela tem que lhe admirar, lhe desejar, querer a sua companhia, querer lhe beijar, trepar contigo e tudo o mais que uma mulher faz quando está ao lado do homem dela. Ela simplesmente não é mais a sua mulher, logo, o meu serviço perdeu o objeto. Não há interesse em meus préstimos. Se o senhor tivesse me pedido para matar a sua esposa, aí sim eu poderia ser útil.
– Como assim, não é mais a minha mulher? Somos casados há mais de dez anos!
Arlindo respira profundamente, faz uma cara de enfado.
– Meu amigo, estamos diante de mais um paradoxo.
– Qual é a porra do paradoxo agora?
Adenor responde alterado.
– Adenor parece se esquecer da pistola sobre a mesa.
– É o paradoxo do corno, pooorra!
Arlindo gargalha mais alto desta feita.
– Quer saber, esta conversa me encheu o saco, vou arrumar outro que mande a Lurdinha para o quinto dos infernos!
– Lurdinha? A sua esposa se chama Lurdinha?
– Sim (Adenor responde intrigado) Lourdes Maria de Souza, minha senhora.
– Pooorra, que mundo pequeno o nosso, Lurdinha é minha cliente, ela veio aqui na semana passada encomendar a morte do marido, mas não tinha o dinheiro para a minha contratação, aí a danada me disse “calma que eu vou dar um jeito do meu próprio marido pagar pelos seus serviços”. Veja só, chegamos ao último paradoxo de nossa entrevista.
– Qual é?
Adenor pergunta temerosamente. Arlindo responde com os ombros caídos e olhar pesaroso.
– O paradoxo do suicídio! Acompanhe o meu raciocínio, se o senhor morrer assassinado por um profissional pago com o seu dinheiro, conceitualmente não é homicídio, é um suicídio. Arlindo pega a arma da mesa e mexe no seu celular.
– Só um instante que eu vou confirmar o depósito na minha conta. Já vou encerrar a nossa conversa.