Miguilim
.Por Victor Fernando
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Tenho um gato chamado Miguilim. O seu nome, em homenagem à obra Corpo de Baile, foi muito criticado por ser um nome infeliz. Mas não venho aqui mostrar o qual miserável é o meu gato pelo seu nome. Noites passadas, ele fugiu de casa, coisa que não é comum, posto que ele é muito doméstico e dado aos descansos de um gato normal. Por dia, ele dorme por volta de doze horas, quase não o vejo. Então, quando isso aconteceu, foi ao mesmo tempo surpresa e preocupação tudo em um mesmo corpo. Porém, segui os preceitos do Epicuro e busquei a ataraxia em algum prazer: a leitura. Passado aquela noite, Miguilim surgiu logo de manhã, com sua cara inocente, indagando-me “Por que preocupastes comigo? Não via que estava em cima do telhado, contemplando a vista?”
-Será que, assim como seu homônimo do livro, ele foi atacado por Macacos enquanto entregava comida a algum gato perdido? – Pensava, colocando a ração em seu pote. – Não. Acho que ele está ficando míope e se perdeu voltando para casa. Devo levá-lo ao veterinário, ele saberá cuidar disso.
Enquanto olhava meu gato comer, veio-me à mente que uma aventura devia ter se passado com ele. O motivo de sua partida devia-se a uma gatinha com quem trocava olhares e miados todas as noites. Victoria – o nome da gatinha – miava para Miguilim, chamando-o e exclamando sua saudade. Ele, por sua vez, soltava choramingos para ela. Os dois, porém, não podiam ficar juntos, e isso os consumia. Victoria tinha um dono muito severo e restritivo, que ficava de olho nela todos os momentos, vigiando-a para não fugir. “Você será morta lá fora”, dizia, segurando-a nos braços e alisando seu pelo. “Fique aqui, que nada te faltará, você não precisa de outra coisa, tem tudo aqui.” Naquela noite, porém, o dono de Victoria saiu para uma confraternização da sua igreja e deixou, por esquecimento, a porta da cozinha aberta. Ela aproveitou a chance que tinha e miou para Miguilim, que imediatamente reconheceu os sons de sua amada e, sem se demorar, correu para junto dela. Os dois, então, puderam esfregar-se um no outro e consumar seu amor. Os seus rabos entrelaçaram-se e o cheiro de ambos era o aroma que não queriam largar. Aquele cheiro, que aos humanos não passa do aroma natural dos felinos, mas que para aqueles dois era a fragrância divina. O olhar dele grudou nos olhos dela e o olhar dela não largava os dele. Ah, o olhar! Não conseguiria descrever o rompante de olhar os olhos da pessoa amada, é algo que, com minha parca idade, não me é possível vislumbrar o significado. Porém, que é tão forte que nos inunda o interior e faz transbordar de alegria. É como uma taça, cujo vinho é o nosso amor. Quanto mais amamos, quanto mais conhecemos e afeiçoamo-nos, mais essa taça fica cheia. Assim, quando há amor de verdade, ela nunca ficará vazia. Tal foi a sensação dos dois.
Porém, algo de inesperado e infeliz aconteceu: o maldito dono de Victoria chegou mais cedo. E chegou, esguio, alto e com um paletó que dançava em seu corpo. Gritou o nome da gata, que ao ouvi-lo, correu em direção à cozinha e pôs-se sentada, esperando a sua presença. Aquele miserável, com seus longos dedos, pegou-a entre as mãos e levou-a para dentro. Naquela noite, Miguilim, preocupado, esperou algo acontecer. Passado uma hora, escutou lá de dentro o barulho de pratos caindo e pés correndo. De repente, viu Victoria correr para fora de casa e subir em cima do muro, do lado oposto ao de Miguilim. Quando viu aquilo, levantou-se de pressa, com as orelhas atiçadas, vendo atônito aquela confusão. Sem saber o que fazer, miou para sua amada, que o olhou e correu para longe. Meu gato ficou estático, olhando o vulto da gatinha que se formava na escuridão. O maldito percebeu a presença de Miguilim e lançou nele uma pedra. Aquilo foi o suficiente para libertá-lo do transe e o fazer recobrar a consciência. Então, Miguilim correu atrás de Victoria, numa esperança de achá-la numa noite densa, com a lua sendo encoberta pelas nuvens e uma brisa que corria fraca e morta. Achou-a encolhida numa caixa, na esquina da rua… com a … A gatinha, ao ver a presença do amado, miou explicando o que se passara. Quando fora carregada para dentro, o seu dono – e como me dói dizer essa palavra – o seu dono arremessou-a contra a parede e jogou toda a sua ração e água fora. Dizia que não podia entender como ela preferia sair, enquanto tinha ele para ser cuidada. A gatinha ouviu tudo aquilo acuada sob as cadeiras, as quais o homem afastava e a descobria, sempre esbaforindo palavras cheias de ódio. Passado a raiva, ele foi deitar-se. Como tinha deixado a porta entreaberta, Victoria tentou escapar, porém, foi surpreendida quando a porta rangeu, revelando sua fuga. O homem correu para a cozinha. A gata correu pela casa, tentando escapar, e foi quando Miguilim ouviu os pratos quebrando e os barulhos de passos. Os dois miaram por longas horas, alternando em momentos de carinho e afago e de desabafos e conselhos. Toda essa aventura se passara em três horas, e o sol já estava quase nascendo. A gata chegara em uma conclusão que Miguilim recusava a aceitar. Victoria queria descobrir o que significava ser gato e o que era a vida, para isso, precisava estar a sós consigo mesma. “Amo-te, juro-te, porém, entenda que essa é minha decisão. Para mim também é um suplício deixar-te, mas é preciso. Amo-te, não esqueça, mas eu preciso.” Os dois, que ainda não engoliram a mensagem, visto que somente mastigaram, subiram em um telhado e esperaram o sol nascer. Quando o sol já despontava, Victoria despediu-se de Miguilim, assegurando que voltaria para revê-lo e Miguilim, com lágrimas a escorrer, beijou-a pela primeira e última vez, e miou, pedindo cuidado e avisando que estaria a disposição quando fosse necessário.
Ele voltou, tristemente e pontualmente, às seis horas da manhã, miando. Minha mãe o recebeu com uma cara séria, como quem diz “Você não toma jeito.” E ele foi, rumo à sua ração, e comeu e bebeu.
Quando sai desse mundo imaginário, fui comer uma maça e tudo voltou ao normal e meu gato tornara-se novamente um gato como qualquer outro.
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.@viictusviana