Luz de Inverno e o Silêncio de Deus

Resenha por Pedro Albuquerque

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Luz de Inverno – Ingmar Bergman

Em 1963, Bergman veio a fazer uma de suas obras mais relembradas pela crítica e pelo público: “Luz de Inverno”. A história se passa em um pequeno vilarejo localizado na Suécia. Acompanhamos uma “tomada”, um pequeno devir referente à vida de um pastor atravessado por profunda crise existencial cujas prováveis origens se dão, primordialmente, por dois fatores lucidamente perceptíveis na narrativa: a morte de sua esposa, jazida há quatro anos em relação ao tempo diegético da obra e uma indagação intensa acerca da natureza de Deus, sua constituição semiótica; sendo este fator, possível produto de desencadeamentos psíquicos gerados pela morte já tratada.
O foco narrativo cerne da obra, reside em um princípio reflexivo: O silêncio de Deus. Em seus ávidos questionamentos, o pastor traz à luz a provocante reflexão que, se por demais enfatizada, remoída, e revisitada, pode até mesmo conduzir ao suicídio: Deus nos criou, nos dotou da constituição anatômica adequada, nos aplicou a forma estética, mas nos fez nascer e viver em um mundo confuso, caótico, nos desprezando em seu ardente e voraz silêncio. Ou seja, estamos sozinhos. Esta perspectiva é razoavelmente semelhante à filosofia do também nórdico -assim como Bergman- Soren Kierkegaard, pensador do século XIX. Segundo Kierkegaard, a substância ou essência cósmica a qual atribuímos a denominação de “Deus” existe de fato. Ele é o criador da vida, das coisas, da realidade; porém, nunca ou raramente interfere nas mesmas. A partir do momento em que nascemos, temos de conviver com os frequentes dilemas existenciais originados pelos encontros e desencontros inerentes à dinâmica da vida. Ao conjunto dialético e contrastante da virtude deliberativa do ser perante ao real, Kierkegaard atribui o termo “Vertigem da Liberdade”.
    A concepção de Deus teorizada por Kierkegaard se aproxima, em algumas particularidades, ao Motor Imóvel aristotélico. Para Aristóteles, filósofo do século III a.C, Deus é a causa primeva de tudo. Sendo a causa primeva de tudo, originou-se a si mesmo. Deus não possui potência de ação, dado que a potência de ação pressupõe o ato e a passagem da potência para o ato, por conseguinte, implica em movimento. Se há movimento, é sinal de que Deus foi causado, o que é um paradoxo absurdo. Como Deus não tem potência e não se move, ele não pode se deslocar para contemplar sua criação. Cabe a Deus, então, satisfazer-se com sua perfeição e perene ausência de movimento. Resta aos corpos concebidos por deus se movimentarem, se degenerarem e se corromperem em uma camada de realidade instável, afastada do elemento criador.
    Tanto a perspectiva de Kierkegaard quanto a perspectiva de Aristóteles trabalham com a noção de que Deus é “*apenas*” a causa originária, nos legando a vida, mas perante ao nosso “curso” existencial, devemos encarar o fado, a fatalidade brutal da liberdade
    Ao adotar-se a crença de que a única competência possivelmente “racional” atribuída a Deus é a nossa criação, há a vitalização de uma aguda desavença com a função e os atributos do divino apresentados pelos cristãos. O deus cristão, se comparado às concepções filosóficas de Kierkegaard e Aristóteles, é deveras objetivo. Interfere em nossas vidas e conta com a competência de alterar a trama e o teor dos fatos. Além do elevadíssimo poder coercitivo, tem o total conhecimento do porvir, limitando completamente a nossa liberdade. A dimensão descritiva de Deus proposta pelos cristãos entra, à velocidade da luz, em contradição com um dos seus próprios e principais princípios, a ideia de “livre-arbítrio”. Como somos livres para tomar decisões sendo que Deus é guarnecido da ciência de todas as nossas eventuais escolhas e seus respectivos resultados e consequências?
    Em “Luz de Inverno”, a indagação sobre o silêncio de Deus é agudamente presente; de maneira mais genérica, é uma marca temática da filmografia -poderosamente existencialista- de Bergman, aparecendo em outros clássicos do diretor, ao exemplo de Morangos Silvestres. Enfim, angústia, dilemas, questionamentos, crítica à natureza de deus, amor e solidão. Estes são os elementos que se entrecruzam e convergem na profunda “Luz de Inverno”.
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@petrussanctorum
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