Humor e linguagem

Humor e linguagem

Chico Viana

O texto de humor é excelente material para o estudo da língua. Isso porque os recursos que levam ao riso decorrem de uma relação peculiar entre significante e significado. O efeito humorístico vem de uma ruptura que, como no texto poético, promove uma desautomatização do sentido. Espera-se uma coisa, e aparece outra. Primeiro, o ouvinte/leitor se depara com o imprevisto; depois, constata que esse imprevisto aponta para outro sentido, portador de uma intenção crítica ou irônica.

Vejamos três exemplos, todos do que se poderia chamar “piadas de casal” (casais comumente são fonte de narrativas humorísticas; em Shakespeare e nos românticos são também alvo de tragédia, sublimidade, ou as duas coisas juntas).

Eis o primeiro exemplo. Conversam marido e mulher; em dado momento, ela afirma: “– Querido, tive uma ideia!” E ele: “– Teve!?”

A resposta do marido à informação dela é imprevista e despropositada. Esperava-se que ele quisesse saber qual fora a ideia. Ao reagir com perplexidade, o homem emite um juízo sobre o intelecto da esposa; sugere que ela ter ideias é, no mínimo, algo muito raro. Rimos não da resposta impertinente, mas do sentido para o qual essa resposta aponta.

O segundo e o terceiro exemplos assentam na ambiguidade, que é um recurso retórico presente em muitos textos de humor. A palavra nesse caso tem mais de um sentido, um dos quais é convencional e pertinente – e o outro “não cabe” na situação; aparece como um intruso. Por força dessa intrusão abre-se uma clareira semântica, propõe-se um nexo associativo surpreendente, que promove o riso.

Vamos ao segundo exemplo, também um diálogo. Desta vez quem fala primeiro é o homem: “– Acho que nascemos um para o outro.” “– É verdade. Difícil vai ser encontrar esse outro.”.

A piada ironiza um velho clichê da retórica amorosa. O efeito humorístico decorre da ambiguidade do pronome “outro”, que na fala do homem tem um caráter menos neutro e mais definido (“o outro” é cada um dos dois). A mulher, contudo, interpreta o outro como “alguém”, “outra pessoa”. Mas não rimos disso. Rimos do que essa troca revela, ou seja, que o seu atual parceiro ainda não é aquele por quem seu coração suspira.

Vejamos o terceiro exemplo. Terminada a cerimônia, o homem diz à mulher com quem acabou de se casar: “– Agora devemos nos transformar em um só corpo e um só espírito. Proponho que sejam os meus.”.

Essa também é uma piada machista. Concorre para o efeito humorístico a antítese entre a ideia de igualdade, presente no primeiro período (devemos ser “um só”), e a locução “os meus”, do segundo, que destaca apenas a figura masculina. O humor não seria possível sem a ambiguidade presente em “um só”, que dá ideia tanto de fusão (promovida pelo casamento) quanto de exclusão (traduzida no propósito do homem de se sobrepor à mulher).

Sendo basicamente produto da linguagem, o humor se presta a atividades de sala de aula que enfoquem certos fenômenos ligados ao sentido das palavras. Entre eles a polissemia, a paronomásia e a homonímia. Vejam alguns exemplos – retirados, como os demais deste artigo, do nosso blog “Penso, logo eis isto” (pensologoeisisto.blogspot.com):

— “O melhor da fama não é colher os louros. É colher as louras.” (Aqui o efeito retórico decorre do jogo com os parônimos “louros” e “louras”.)

— “Há dois tipos de colégio. Aquele em que a aprovação vem da nota e aquele em que a aprovação custa uma nota.” (Graças à polissemia de “nota” foi possível opor as instituições sérias, que aprovam o aluno por seu desempenho, àquelas conhecidas como “Pagou, passou”.)

— “Há pessoas cheias de si e pessoas cheias de ‘se’”. (A homofonia entre o pronome oblíquo e a conjunção condicional permitiu contrastar indivíduos confiantes e indivíduos… hesitantes.)

— “Curta, a vida. Então, curta a vida”. (Esse é um caso de homonímia perfeita, que consiste na coincidência formal entre vocábulos de classes gramaticais diferentes. O primeiro “curta” é adjetivo; o segundo, verbo.)

— “A política é um jogo de faz de contra.” (À ideia de simulação, presente em “faz de conta”, superpõe-se a de oposição graças ao jogo com os parônimos. Com isso, quer-se sugerir que os políticos fingem que são adversários; dependendo das circunstâncias, podem vir a se aliar.)

Vale lembrar, por fim, que os efeitos acima descritos não raro se associam ao recurso intertextual da paródia. Nesse caso o propósito é criticar determinados clichês ou ironizar a pretensa seriedade de enunciados que se supõe definitivos. Eis alguns exemplos: “O homem é um ser dividido entre instinto e ração”, “A vida não dá o metro nem a rima; dá o mote. Então relaxe e glose”, “Os opostos se atracam”, “Quem sai aos seus não se regenera”.

 

@chicovianaw

 

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