ESQUEÇA O LIVRO, VEJA O FILME

ESQUEÇA O LIVRO, VEJA O FILME

.Ludo Santos

Volta e meia vejo alguém disparar a opinião de que o filme não chega aos pés do livro no qual foi baseado. E sempre os mesmos lugares-comuns. O livro é muito mais rico em detalhes, faltou isso e mais aquilo, a estória não foi fiel ao original, etc. Ora, uma comparação dessas é difícil de se fazer sem levar em conta pelo menos dois fatores. O primeiro é a impossibilidade de uma obra literária, às vezes com centenas de páginas, caber em seus detalhes numa adaptação fílmica de 120 minutos. O segundoe mais importante é que estamos diante de duas linguagens completamente distintas.

Mas então estaríamos condenados a não poder comparar o livro com sua adaptação às telas? É claro que não. O que precisamos é de uma análise literária e outra cinematográfica e aí sim podemos emitir uma opinião mais equilibrada entre um e outro, quando possível. Digo quando possível porque com os clássicos do cânone universal é bom nem perder tempo, pois simplesmente não há termo de comparação. Nem a atuação shakespeariana de Vivian Leigh vai tornar o filme Ana Karenina, de 1948, minimamente comparável ao clássico escrito por Tosltói no século 19. A adaptação não é ruim, mas o romance é uma obra de arte que está entre as maiores criações de todos os tempos. Melhor ler as mais de 800 páginas do tijolaço russo e assistir a sua versão cinematográfica de mais de duas horas sem estabelecer um Fla-Flu entre os dois.

Certa vez, argumentei isso com um amigo na tentativa de convencê-lo de que o romance policial Sobre Meninos e Lobos não era assim tão melhor no papel quanto ele defendia. Não adiantou. Taxativamente ele estabeleceu que um livro será sempre superior ao filme ao qual deu origem e pra fechar com chave de ouro seu raciocínio, me desafiou a dar um exemplo de adaptação que seja melhor que sua versão literária.

Touchè! A contenda estava no papo. De aperitivo, servi um romance que li na adolescência num dia chuvoso na praia. Sem nada para fazer, tive a “sorte” de encontrar numa estante um exemplar que vendia aos borbotões naqueles meados dos anos 70.

Eu andava numa fase Érico Verissimo e Hemingway. Por isso, o choque ao ler o medíocre O Outro Lado da Meia Noite da verve subliterária do escritor americano Sidney Sheldon. O autor, famoso como roteirista de uma série boboca de TV chamada Jeannie é um Gênio, escrevia obras de baixo teor literário, com sua infalível receita de emoções baratas recheadas de traição, vingança,dinheiro, sexo e julgamentos pomposos. Em 1977, quatro anos após a publicação do best-seller, a Fox, pegando carona no sucesso do livro, investiu os tubos para levar o melodrama à telona. Foi um retumbante insucesso de bilheteria. Mas supreendentemente o novelão dirigido pelo inglês Charles Jarrot,com uma delicada trilha sonora de Michael Legrand, se mostrou aceitável na tela. Uma boa reconstituição da França na segunda guerra e belas locações na Grécia serviram de pano de fundo para retratar de forma convincente o triangulo amoroso vivido por SusanSarandon, John Beck e a bela atriz francesa Mari-France Pisier.Não é uma obra-prima, mas vale as duas horas de escurinho.

Outro best-seller que ficou muito maior na tela foi As Pontes de Madison, romance de estreia do escritor americano Robert Waller, um professor universitário que em 1990, então com 51 anos,abandonou as salas de aula para rodar pelo Iowa em busca deinspiração para um livro. Acabou encontrando em um lugarejo chamado Sete Pontes, no condado de Madison, onde se vangloriava de ter escrito em apenas onze dias o melodrama. Deve ser por isso que o opúsculo tem uma linguagem de jardim de infância, além de um apanhado de clichês sentimentalóides de quinta categoria e que por incrível que pareça vendeu mais de 50 milhões de exemplares nos anos 90. A estória do adultério água com açúcar vivido pela dona de casa Francesca e o fotógrafo Robert Kincaid chamou a atenção da produtora de cinema Kathleen Kennedy que comprou os direitos e convidou Clint Eastwood e Meryl Streep para os papéis principais. Clint não conhecia o livro e Meryl o tinha abandonado na metade por achá-lo chato. E eis que uma mudança no enredo fez com que o melodrama funcionasse razoavelmente bem na tela. Para isso, contribuíram muito as modificações impostas pelo roteirista Richard LaGravanese ao propor que o casal de filhos conduzisse a narração em flashbacks,trazendo um novo olhar em relação ao comportamento da mãe. Sem se desviar da trama principal, esta visão nos apresenta um dilema não presente no livro, ou seja, a independência dos pais em relação aos filhos e a nossa dificuldade em tolerar aquilo que foge do padrão pré-estabelecido. Outro motivo para o sucesso do filme foram as competentes interpretações de Eastwood e Meryl Streep que seguram o ramerrão até o final. Não é um grande filme. Longe disso. Mas rendeu uma bilheteria de 170 milhões de dólares e centenas de casamentos na ponte Roseman.

Mas o crème de la crème em termos de comparação se dá com O Poderoso Chefão. O escritor nova-iorquino Mário Puzo estava numa pindaíba daquelas e com cinco filhos pra criarnaqueles meados dos anos 60 quando recebeu um adiantamento de 5 mil dólares para escrever uma estória sobre a máfia siciliana. Como era nascido numa família de imigrantes italianos e havia se criado nas ruas de Manhattan, topou contar a saga de uma família mafiosa, mesmo nunca tendo pisado na Itália. Em 1969 entregou a encomenda à editora sem grandes expectativas, pois era um romance violento, contado de forma convencional com uma linguagem idem. O livro caiu no gosto popular e milhões de cópias foram vendidas, resolvendo seu problema de dinheiro do dia pra noite.

O sucesso do livro chamou a atenção da Paramount que adquiriu por uma ninharia os direitos de adaptação para o cinema. O estúdio queria um diretor europeu para as filmagens da saga, de preferência italiano. Sérgio Leone foi o primeiro a ser procurado, mas como já tinha comprado os direitos de Era Uma Vez na América, recusou o convite achando demasiado ter no currículoduas películas de gangsters. Luchino Visconti foi sondado, mas estava compromissado. Elia Kazan e Costa-Gravas se assustaram com a violência das páginas e nem quiseram conversa.

O jeito foi buscar algum ítalo-americano disponível e barato. O novato Francis Coppola, de 35 anos, foi o escolhido, mas recusou o convite por achar o livro fraco e por não querer ficar mal com a comunidade ítalo-americana. Mas como também estava numa pindaíba, foi convencido pelo seu sócio George Lucas a rever adecisão com um argumento irrefutável: precisavam de dinheiro pra pagar as dívidas da produtora deles, a Zoetrop, em estado pré-falimentar. Coppola pôs mãos à obra e, a partir de uma novela mediana, teceu um roteiro magnífico tendo como corroterista o próprio Mario Puzo. A Paramount deu ao diretor um orçamento baixo de 2,5 milhões de dólares (no final, gastou 6,5 milhões) e uma sugestão de elenco que quase o levou a receber um pé no traseiro. O estúdio não queria de maneira alguma no elenco o polêmico Marlon Brando e o desconhecido Al Pacino. Coppola bateu o pé e depois de muita briga conseguiu que ambos pelo menos fizessem testes para interpretar Don Vito e Michael Corleone, os dois principais personagens da trama. Brando arrumou uns chumaços de algodão e os colocou nas bochechas imitando a voz e o modo de falar do mafiosomero um dos EUA, Frank Costello. Foi aprovado na hora para o papel do chefão. Já Al Pacino teve de ser bancado por Coppola, pois a Paramount insistia em James Caan que no final das contas encarnou Sonny, o primogênito de Don Vito.

Coppola cortou muitas partes supérfluas da estória mantendo a essência, mas sua grande sacada foi usar a dinastia Corleone como uma metáfora do capitalismo americano, extremamente pujante, competitivo, individualista, e ao mesmo anacrônico nos seus métodos e valores. Sua visão épica do crime organizado expôs as vísceras de uma sociedade construída no mito da livre iniciativa, mas que não dispensava a violência e a corrupção como ferramentas de ascensão social, de triunfo a qualquer preço.

Além de Brando e Al Pacino, Coppola chamou Gordon Willis para ser o diretor de fotografia. O Príncipe da Escuridão, como era chamado, criou nuances de claro/escuro nunca vistos até então em películas coloridas. Para musicar a saga, o diretor buscou o romano Nino Rota, um dos mais brilhantes compositores de trilhas para filmes.  

Resultado: um estrondoso sucesso de crítica e público, três Oscar, cerca de 140 milhões de dólares arrecadados, a segundamelhor obra cinematográfica de todos os tempos na seleção do American Film Institute, e o reconhecimento do filme como umasoberba lição de roteiro, interpretação, produção, iluminaçãofotografia, montagem e trilha sonora. Enfim, uma aula completa de cinema.

Paradoxalmente, Coppola nunca se encantou pela sua obra-prima. Acha que romantizou demais a violência, além de glamourizar os gangsters dando-lhes um estereótipo de homens refinados, elegantes, estrategistas natos, até com alguns valores.Na verdade, segundo suas palavras, os mafiosos na vida real nunca passaram de sujeitos toscos, ignorantes, inescrupulosos,sanguinários, quase animais.

Quanto ao livro, certa vez o ironizou afirmando que suas páginas eram uma boa opção de leitura para a praia. Não falou separa um dia chuvoso ou não. Na dúvida, recomendo ao leitor seguir as instruções contidas no título deste texto, tanto para o livro de Puzo quanto para os de Sheldon e Waller.

– Primavera de 21

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