Emílio

Emílio.

Geórgia Alves 

Emílio. O nome significa rival enciumado. Emílio de Wellington de Melo é a personificação do caráter de Emílio, feito da tensão e da mais rígida e determinante atenção. Emílio ou da Educação. Emílio é um romance de Educação. Não de formação. Não. 

Emílio é para quem parece que não notou que há um estranho na praia oferecendo picolé de morango a crianças quando os pais piscam. Piscamos os olhos e o estranho está lá. E num piscar de olhos Emílio nos arremessa em uma consciência do que se pode fazer num piscar de olhos quando tudo fica de ponta cabeça. De repente ligamos a tevê e há uma fala muito esdrúxula, criminosa para dizer o mínimo, de pessoa (pessoa?) fardada e com faixa de presidente. Essa coisa que dizia frases sobre “pintar um certo clima com uma garota de 14 anos”. Quem pode ver (e se ouvir?!) diante da frase de que “pinta clima com menina de quatorze anos?” 

Quem lê e escreve, mas sobretudo quem assina embaixo os genocídios e toma parte da história. É esta a história que querem? De um país tão desigual? Tamanha é a desigualdade, logo quando se buscava garantia, sim, no passado se tentava ao menos, buscamos assegurar, por força da lei, o mínimo de dignidade a meninas e mulheres violentadas. Tantas vilipendiadas de direitos mínimos.

Emílio é uma Educação no modo de ler. De viver. De cuidar. Tem que estar atento, atenta ao modo de edição das cenas. Muito bem escritas. Transportam e levam, mas não pela mão, pela psiquê. Conduzem em ritmo rápido, exigente. Tem que desenvolver a capacidade de pensar, ao mesmo tempo que, em várias situações, faz sentir semelhantes pontos de vista em pessoas diferentes. O recém-lançado Romance de Wellington de Melo – autor também de Felicidade (2016), O caçador de mariposas e Estrangeiro no labirinto (ambos de 2013) e O peso do medo: 30 poemas em fúria (2010) – é da Educação.  Da Educação do olhar. Do ver quando algo está mesmo dando errado. Porque ninguém vê quando está entrando em um labirinto e ninguém se apercebe do valor do silêncio quando não se sabe onde está se metendo. E ainda que você se pergunte porque o narrador – ou seria Cláudia – nos avisa que não lhe interessam mais os monstros, porque no labirinto onde estamos prestes a entrar não há um minotauro. Monstros são pessoas comuns, que banalizam diariamente gestos que assentem o mal. 

O que me leva a algum regozijo hoje é o de pensar que o que é mito está morto. Está? Vamos do primeiro aos próximos capítulos. 

Deixamos a sensação da groselha mistura à areia, o susto e logo estamos diante de uma nuvem feita à pólvora, às algemas nos punhos de Plínio. É preciso saber que o Romance é sobre um certo professor, Emílio Garza, cuja casa é um espanto para sua condição, e que Emílio está morrendo. Há uma única bolsa entregue a cada ano nesta universidade de onde Emílio faz toda diferença e não se pode aceitar a indiferença de Cláudia. Cláudia que se lembra de tudo e sabe que o Centro de Formação Humana Lúcia Siracusa que Clarissa frequentava era uma referência social na vida de quem enfrenta os preconceitos de classe, inclusive frente à própria família. Justo quando começou a namorar alguém com perfil semelhante ao do seu pai, Jorge. Um traumatizado. Desequilibrado? Instável? Ou seja, nesse ambiente se pode aceitar fumar um, mas beber, não pode. Talvez com moderação? Quem sabe. A sociedade sabe cada vez menos de si. E assim vamos. Rumo aos abismos.

No momento em que as amigas se reencontram Jorge que é uma referência para a filha, mas não para Cláudia, é alguém deprimido e constantemente com um copo de whisky colado na mão. 

Ainda tem as meninas da outra rua e Marcela, também filha de professor, de uma escola para ricos, é bolsista. O que a gente percebe é que Marcela, do seu jeito desligado, inspira Cláudia. A ponto dela querer também ser musicista ou, pelo menos, aprender tocar um instrumento. Não o violino, como Marcela, algo maior: Piano. Sim, piano é mais. É fazer mais. Sempre mais. Marcela apresenta a Cláudia Heitor, nome bastante sugestivo uma vez que a trama tem referências constantes tanto à Odisséia quanto à Ilíada. Outro aprendizado. 

Vão se reencontrar e Marcela está sem o violino, pois teme que “as meninas da outra rua” façam alguma maldade. O mundo não é bom Sebastião. 

De novo, aberta estou a aprender de um tudo. Cláudia e Marcela mal se reencontram e a amiga (dá para chamar de amiga?) malda a relação de Marcela com Heitor. Ou seja, ninguém vive a própria vida. Não viva a própria vida. Todos sabem.de tudo. Uma lástima. Outras circunstâncias se desenrolam enquanto biscoitos de goiaba são servidos queimados. Marcela dá a luz ao pequeno Plínio. Não voltará mais ao Siracusa. 

As festas entre professores diminuem. Marcela não percebe a mudança ems.eu status quo e continua tocando o violino no intervalo do recreio. Para inveja maior das meninas da outra rua que investem sobre ela todo mau agouro. Quem acredita nisso, nos dias de hoje? Em tempos de redes sociais a inveja é quase combustível. 

Emílio é essa sombra de tempos perdidos não como queria Proust, mas como diziam os músicos que conheci na década de 80. Deixa essa sensação de relógio parado no pátio dos colégios se multiplica e estes ambientes se multiplicam pelo país. Por exemplo com a criação do Recreio Bonanza. Somente estas mulheres soam como vozes de uma sabedoria distinta: Vânia e dona Lourdes. Até que Vânia fale em magia negra. Enquanto dona Lourdes a critica. É quando a narrativa recorre à sabedoria grega ou age como personagem de uma tragédia grega expondo seios para que o filho desista de partir para a guerra. Lúcia Siracusa é padroeira dos cegos. Jorge talvez devesse guardar o whisky.  Largar o whisky. 

Ah, ainda tem os arautos. 

Ratos são os arautos do anticlímax. 

Emílio, aquele que se sente desafiado por obstáculos que os enfrenta sempre com a certeza de vitória. Vê na pedra o caminho. Aliás,  os obstáculos lhe parecem um incentivo a continuar lutando, é possível até afirmar que lhe tragam prazer. Publicado pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE) está distribuído entre capitais do país e é uma exceção em vários aspectos. Porque é feito por autor também editor, experiente, com potência de atuação mais que nacional. Wellington com sua paixão por máquinas de escrever – e Emílio foi, primeiro, elaborado em várias máquinas de escrever: Uma Olivetti Studio 44, uma Olivetti Lettera 22, uma Erika 10 e uma Remington Quite-Riter. 

Wellington, além do amor às máquinas de escrever, transita bem na produção do livro como um todo. Ele abraça desde a produção do formato Cartonera até a coordenação de eventos literários. Faz tempo que realizou a Free Porto, dos diálogos mais democráticos no campo da Literatura, chamada de “alternativa” à época, mas a gente nunca esqueceu. Atrai autores de todos os cantos do país a Recife. Conheci Wellington lá pelos idos de 2010. Quando do primeiro livro dele, dois anos depois tive a chance se publicar o meu. Juntos na produção de um programa de entrevistas trouxemos à capital pernambucana nomes da Música à Literatura e da Tradução. 

“Os que sobreviveram foram soterrados pelo magma”, diz outra frase de Emílio. Talvez não ainda. Ainda há o bar onde Heitor e Clarissa apertam um botão e os copos surgem do nada, acionados por dispositivo e já estamos em uma espécie de Califórnia dos anos 70. Onde homens podem usar perfumes doces “demais”, “para um homem”. Há uma espécie de fog que perpassa a trama, para além dos clássicos. É um ambiente colorido. Mais que a Aurora Boreal, de certa liberdade e compaixão entre os personagens depois da morte trágica de Jorge. A morte de Jorge nos levará a um mistério: O que haveria no computador da sala de trabalho daquele professor deprimido? E se todos os caminhos pudessem levar à Praia Azul, porque uma criança se perderia e iria parar no colo de um estranho que lhe oferece sorvete? Só lendo o livro. Não para saber. Mas para aprender. Saber que sabão não se come. Ainda quando todo mundo consome refrigerante com gosto de sabão e esmalte.

“O ódio será sempre a nossa pátria” é a frase destacada pelo escritor Inácio de Loyola Brandão, que nos orienta no labirinto a saber do paradeiro de Emílio, ou da Educação: “Emílio, na primeira linha, fala de ódio. No último parágrafo, de amor. Percorri as quase 400 densas e tensas páginas deste romance conduzido também por uma frase: “Quanta culpa acumulamos, quantos fardos carregamos ao longo da vida sem razão?” O que o autor de Zero e vencedor do prêmio Machado de Assis está nos dizendo é que vale o tempo, o aprendizado. A educação que se apreende entre a tensão e a densidade que Emílio oferece assim, como quem convida para um passeio na Praia Azul, na Terra do Sol. Onde tudo que precisamos saber talvez até já exista em nós: É amor. Tudo que precisamos não é do ódio, mas do amor. Simples assim.

 

@georgia.alves1

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