EM TERRA DE CEGO…

EM TERRA DE CEGO…

Pedro Santos

Eu quase fui “Ministro da Eucaristia da Igreja Católica”, aquele fiel que ajuda o padre na entrega das hóstias (a fração do pão que simboliza o “Corpo de Cristo”), tanto nas Celebrações, quanto em visita aos enfermos. E foi um cego a razão d´eu não ter seguido em frente (ou tenha feito dele um bode expiatório para a minha própria cegueira?). Eu e minha esposa chegamos a fazer o curso preparatório que a igreja disponibiliza para tomar posse nesta atribuição religiosa. Confesso que meu ingresso seria bem mais para acompanhar minha mulher do que o atendimento a um “chamado de Deus para servi-Lo”. Faltavam alguns dias para a nossa posse nessa missão eclesiástica, quando o tal deficiente visual entrou em meu caminho. Naquele tempo, eu também trabalhava com “pesquisas de opinião” e preparava a finalização de uma delas para entregá-la e receber o pagamento. Esse trabalho de pesquisa eu fazia juntamente com minha precária atuação na advocacia e o meu incipiente começo na área imobiliária. Ou seja, fazia de tudo um pouco. Tinha eu um escritório na Rua Manoel Gonçalves, no centro de Itaúna, atrás da Igreja da Matriz, no mesmo local onde hoje existem os apartamentos de dois irmãos meus. Antes, eram lá três lojinhas enfileiradas num elevado, que depois seguia reto, não acompanhando o declive da rua, estando a minha, que era a terceira, uns dois metros acima do passeio e sem nenhum alambrado ou corrimão que impedisse a queda de alguém. Mas parecia seguro, ninguém tinha caído dali até então… até então! E o primeiro tombo de uma pessoa foi num dia de sábado, quando eu trabalhava na tal pesquisa e precisava urgentemente terminar a impressão do relatório, o que me daria uma boa grana. O contratante ligava a toda hora, curioso para saber os resultados do levantamento estatístico, mas a impressora pirraçava… embolava as folhas de papel e eu não conseguia terminar. “Que merda!”, era essa a expressão que mais saia de minha boca. A porta da minha loja estava apenas meio aberta, para que ninguém me incomodasse… permitindo também que entrasse um pouco de ar. Mas quando olho lá fora… vejo alguém passando … eram duas pernas e uma bengala… “toc, toc, toc…” parecia um cego… e ia rumo ao paredão da divisa… (“Ah meu Deus, eu não posso nem olhar…também não posso parar aqui… e se ele se virar pro lado da rua… ele vai cair…”) assim eu pensava alto, enquanto a impressora engasgava mais uma vez. E ele se virou mesmo pra lá…pro lado da rua…e foi no seu “toc-toc-toc”… e, então, caiiiuuuu… logo quando apoiou sua bengala… no aaarrrrr sobre o passeio: “plof, ahhh, pracataqui..aiaiaiai…” Foi algo assim que se ouviu… uma angustiante sonoplastia, talvez bem pior do que esta, com a qual agora tento expressar a sua queda. “Ó… o cara caiu!”… “Nossa senhora, ele machucou, bateu a cara no poste!”… “Parece que ele é cego!?” Estas e outras falas não eram minhas, chegavam lá de fora aos meus ouvidos, à medida que se juntavam pessoas no passeio, socorrendo o pobre cego (cuja queda eu poderia ter evitado… se tivesse deixado meu trabalho de lado por alguns instantes…mas eu tinha que terminá-lo… “todo mundo sabia disso!!”) “Que altura isso aqui, hein? Sem nenhuma proteção…” Claro, falavam agora da falta de segurança do patamar onde estava o meu escritório… de onde o pobre sujeito caíra. Não dava mais para eu ficar escondido dentro da loja e tive que sair: ”Uai, o quê que houve?”, perguntei (cinicamente) como se não soubesse de nada. “O cara caiu, tadinho!” E continuaram falando entre si, um olhando pro outro e alguns olhando pra mim… Nisso, chega uma ambulância. Socorreram o homem, enfim. Graça a Deus… e foi cada um pro seu lado. Terminei a pesquisa…e saí. Mas não me abandonava uma dor na consciência, um remorso… também uma raiva do cego, coitado: “porque que ele tinha que subir logo ali, caramba?!” Mas eu podia ter gritado: ”Ei, ei… para, para, cuidaaaado!!!”…e largado a minha pesquisa e pulado em suas pernas, rolado no chão com ele e o segurado: “Quase que cê cai, heim, meu amigo!” Mas não… não fiz nada disso, ele caiu e foi levado para o hospital… e poderia até ter morrido ali… na minha porta! Um homem morrendo por minha culpa, minha máxima culpa, minha tão grande culpa… e “eu querendo ser Ministro da Eucaristia?!” Fui para casa, um nó no peito, do tamanho de uma melancia. Contei o caso a minha esposa e eu não parava de falar…me flagelando com as piores palavras: ”Ministro da Eucaristia? Jamais! Não, não, não vou… não sou digno! Quer saber, querida?! Vou é lá no hospital, atrás desse pobre coitado, que eu posso até ter matado!” E fui. Cheguei ao pronto-socorro… mas confesso, já sem aquele ímpeto de bom samaritano que me conduzira até lá, pois, fui pensando “melhor” pelo caminho: “Calma, calma… assim cê vai se comprometer… a culpa era minha, mas não toda… quer dizer… um pouco minha, talvez… mas eu não o empurrei!… ele caiu sozinho… por uma tremenda falta de sorte do infeliz…” No hospital, perguntei ao moço da portaria: ”Ô amigo, teve um rapaz cego que foi socorrido e veio pra aqui… eu vi a queda dele, coitado, como ele está? Tá internado?” “Ah, sei… ele já foi liberado.” “ Tem muito tempo? Cadê ele?” Nem esperei pela resposta e já fui saindo, mais aliviado. “Pelo menos ele não morreu, já foi até liberado, uai!” Quando cheguei à porta do hospital , olhei prum lado, olhei pro outro… e vi lá na frente, no ponto do ônibus, uma bengala e uma mão a segurá-la… e a aquela mão era a do meu amigo cego. Era ele, graças a Deus! Caminhei para lá, como se uma força, não sei de onde, me impulsionasse para reparar o meu erro. “Opa!, Ocê tá bem? Vi a sua queda, meu camarada! Que tombo, heim?!” “Ah, já tô mió um tiquinho, mas ainda dói a cara!” O rosto dele tinha um belo hematoma. “Cê é daqui mesmo, colega?” “ Não, sou de Divinópolis.” (“O quê que um cego sozinho sai lá de Divinópolis e vem pra Itaúna, fazer o quê? E ainda pra cair justamente na minha porta, diabos?!”) “Eu venho sempre aqui.” “ Você tem parente por cá?” “ Não, mas quando eu enxergava, eu vinha muito a Itaúna.” Me contou que, quando ficou cego, sua mulher o abandonou. “E agora, cê vai pra onde?” “Tô esperando o ônibus, pra chegar até na praça e de lá descer pra Rodoviária.” “ Não, não, de jeito nenhum, eu te levo na Rodoviária!” Eu o peguei pelo braço, coloquei-o no meu carro e o levei até o terminal rodoviário. (Acho que eu queria mesmo era me livrar dele, daquela pedra em minha consciência!) No caminho, ainda fui conversando com ele e aquela atenção que eu lhe dispensava aliviava meu coração. E pra ganhar a indulgência plena, arranquei do bolso 50 reais e coloquei na sua mão: “Isso é pra te ajudar… pega aí, pega!” E ele pegou. (Cheguei a pensar depois que eu poderia até ter colocado um nota de dois reais… e falar que era de 50… ele não enxergava mesmo…nem ia perceber… mas isso não!! Seria como empurrá-lo novamente! Eu já tinha muitos pecados a prestar contas!). Nem esperei que ele entrasse direito no ônibus que o levaria para sua cidade (“E pra bem longe de mim…” insistia uma voz que ecoava em meu peito vazio.), mas ainda o olhei… vendo-o recostado atrás da janelinha… como se fosse aquela a última vez que o veria. Mas não é que… uns dias depois, andando pela cidade, lá ia ele novamente…”toc, toc, toc…” com sua bengala, com uma carinha bem melhor do que aquela do nosso último encontro. Ele sobrevivera e talvez nem se lembrasse mais de minha boa ação. Não assumi o cargo na Igreja, continuei a não me sentir digno daquela missão. Também, confesso, independentemente do empurrão que aquele cego me deu para fora da estrada religiosa, acredito que não era aquela uma vocação que eu realmente queria…ou mereceria. Continuo “católico”, como muitos católicos por aí. Ainda fiz muitas pesquisas de opinião e a antiga loja onde era meu escritório não existe mais. De fato… acho que aquele cego, de alguma forma, para alguma coisa, abriu meus olhos… ou foi apenas um “enviado divino” para conter a minha indignidade de servir a “sua igreja”.

(Esta história faz parte de minhas anotações pandêmicas, “PUXANDO PELA MEMÓRIA”, que vai reunindo o que me lembro de mim mesmo e dos meus.)

@opedrosantosde

 

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