Documentário do espaço
Capítulo 1; versículo 4
Documentário do espaço
Ir à locadora era uma atividade que se fazia em família, a minha tinha videocassete. Coisa de rico na época! Mas a minha família era pobre, ganhamos um videocassete num consórcio do trabalho do meu pai, fui chamada para fazer o sorteio, sentei no colo do brigadiano velho e pus a mão no saco de veludo, girei, girei, girei a mão e o primeiro número a ser sorteado foi o do meu pai. Do batalhão inteiro, foi o dele. “Marmelada”, gritaram, mas eu não espiei. O videocassete virou evento da família. Eu tinha direito a escolher um filme de criança, mas escolhia sempre o mesmo, para desespero do meu pai.
“Já viu esse!”
“Mas quero de novo!”, Dom Drácula, um desenho de um vampiro que era como um pai solo. A filha esperta, o pai um paspalho.ela era cuidava dele. Eu via isso todo final de semana.
Mas quando estávamos saindo da locadora, peguei uma fita de documentário, um fundo preto, nuvens púrpuras, azuis e magenta cobrindo e abraçando as estrelas. De alguma maneira aquela imagem bateu em mim, parecia algodão doce misterioso, eu queria entrar naquela foto, nadar entre aquelas cores. Mas, em um segundo olhar, o magnetismo daquilo começou a despertar algo mais, uma ponta de apreensão surgiu, que lugar era aquele? De onde aquelas coisas vinham?
“Pai, leva esse?”, pedi.
“Só pode escolher uma…”
Dom Drácula numa mão e Cosmos na outra, curiosidade versus conforto, conhecido versus desconhecido… Voltei devagar à sessão infantil, com pena e ressentimento, deixei o vampiro na estante, ainda não tão certa da minha escolha.
Não sabia ler, caminho, de mãos dadas com pai e sacudindo a sacola branca cheia de fitas, pedi para ele lesse o nome do que escolhi.
“Às limites do oceano cósmico”, ele disse, torcendo um pouco o nariz.
Aconchegada no sofá ainda forrado de plástico, vi o videocassete engolir a fita, em instantes uma voz imponente, eu pensava que era tal qual a de um anjo, falou o nome Carl Sagan. Depois, ao som de um piano, um onda imensa, lisa, azul, subiu na tela e despencou sobre si mesma com uma crista branca.
“Isso não é de criança”, meu pai comentou, mas eu já estava irremediavelmente lá, lá dentro, da onda, do mar, do cosmos, porque a primeira coisa que Carl Sagan disse, na ponta de um penhasco foi: “o cosmo é tudo que é, foi ou será.”
E não interessava mais nada diante dessa revelação elevada, extasiante, sedutora, absoluta. Sentir-se parte do todo e o todo parte si, além do tempo, da morte, da vida. Uma coisa só, o cosmos. Não posso dizer que fiquei chocada, não foi isso, era aquela onda, o mar, a imensidão da imagem na capa da fita debaixo do plástico surrado. As letras minúsculas da sinopse jamais dariam conta dessa revelação estarrecedora, de que em algum lugar eu estava, ao mesmo tempo em que tudo estava em mim, porque eu era parte do cosmos também. Me dei conta do quão grande era a coisa por dentro, a imensidão liquefeita onde mergulhava, mas que também estava contida no meu fundo como uma vasilhame. Mas, ao mesmo tempo que estava só nesse incalculável oceano, também estavam os outros, todos eles, que também eram cosmos, estavam ao redor e junto e dentro, porque éramos uma coisa só. Isso aplacou um pouco a minha angústia de solidão, mas ao mesmo tempo me pôs em alas, porque havia muita coisa dentro de mim, coisas que eu não sabia, coisas que poderiam me aterrorizar, coisas eternas e cheias de sentimentos confusos.
A onda caiu, a profusão de magenta se expandiu, as estrelas vermelhas e brilhantes piscaram e pulsaram e palpitaram, eu estava lá no início, na semente, meu corpo inteiro tremeu, eu tive vontade de vomitar, a minha cabeça estava girando e meu coração na boca, mal conseguia respeitar, o corpo quente debaixo das cobertas e minhas pernas se cruzaram involuntariamente, eu queria esconder a vergonha de ter molhado a calça. O que havia acontecido? Achei que tinha feito xixi. Mas não… eu soube que não porque imediatamente me senti culpada e envergonhada é algo me compelia a esconder aquilo. Debaixo de mim o plástico do sofá todo úmido. Era meu pai ali do lado, tomando mate, minha mãe do outro, prestando atenção no filme, e eu ali… com cosmos inteiro tentando sair.”
@jaquemachadoescritora