Desordem
Desordem
Jaque Machado
Antes de fechar os olhos (e espero que já tenha imaginado isso dentro da tua cabecinha), no que pensaria? Seria nas coisas boas? Nas ruins? Geralmente só projetamos no que vamos pensar depois que já fechamos os olhos, é assim, exatamente como um sonho.
Quando fechei essas peles pesadas, que já não podiam sustentar a si mesmas abertas, fui para outro lugar e pensei que era o céu, coisa que falam nas igrejas e nos livros bonitos, mas não. Se me perguntassem aos vinte e poucos, no auge do meu feminismo radical, jamais imaginaria ficar presa naquela lembrança, logo naquela! Talvez pensasse no dia da formatura, na melhor trepada da vida, até no dia do parto, no primeiro ou no segundo, tanto faz, mas não. Enquanto sentia o corpo ferver como óleo quente na fritadeira e depois ir esfriando aos poucos, quase um orgasmo, abri uma porta feita de químicas disparadas como um jato no cérebro desesperado que morre, foi para lá que fui, para sempre. Para nunca mais voltar.
Pega de criança no peito é coisa que dói e precisa calejar para que se troque a careta pelo sorriso, antes de virar coisa linda é como o inferno. E passa toda uma vida na cabeça. Como se fôssemos a única criatura incapaz de enfiar a teta na boca do filho e deixar lá, para só ser sugada, ele tirando o seu mundo pelo bico; não podemos fazer nada. Eu não podia, era questão de orgulho dar a maminha e ser a mãe como as demais que via, as outras de agora, parindo nas suas banheiras de plástico no banheiro, mas também como as de antes, as que vieram arrastando genes ao longo do tempo até chegar no bico desse peito, daquele peito, mesmo que tenham me feito mãe cortada à faca.
Fechei os olhos e abri aqui, porque também fechei naquele dia, de dor, mas as pálpebras abriram e estava lá naquele dia, ou aqui, era um momento só. Tu no colo e eu te olhando, sem saber o que fazer exceto enfiar a teta na tua boca, porque era isso ou nada. E a boquinha pequena, a tua, tateando sem parar a pele arrepiada, no meio daquele xales imenso, das roupas que nem serviram de tão largas.
Eras tu ali.
Talvez tenha sido porque esse mesmo olhar foi o que me mirou por último, talvez o cheiro do pastel frito que entrou pela janela do hospital vindo de algum carroceiro na rua e que nem imaginava o que estava acontecendo aqui. Mas era nosso o pastel, que estava gelado na guarda do sofá, no meio das roupas bagunçadas, as limpas e as sujas, jogadas pelo furacão da maternidade. Eu sei que dizia: “morreu uma mulher no parto, eu morri.”. Eu dizia sempre, mas era porque morremos e nascemos todo dia, ainda assim estamos aqui até não estarmos mais. Aliás, nunca morri antes por isso tua causa e ficava dizendo para mim mesma que teria sido insuportável para uma filha crescer sem a mãe, mas a verdade é que nunca morri antes porque te amava demais para isso, queria estar ao teu lado o quanto pudesse e não seria qualquer coisa a me levar, decidi que só o tempo, só ele teria esse direito.
E tinha sangue e leite misturado, choro, meu e teu. Éramos nós as duas nascendo e morrendo na ponta do meu peito, no verão daquele inverno dentro do quarto. E a boca não pegava, o seio não fazia pega, o nervosismo tremia todo meu corpo. E aquele choro nosso foi uma noite inteira. Até que quando o sol estava vindo, cansadas, já não estávamos nos olhando cheias de frustração e lágrimas, tu veio com aquela boquinha e encaixou. E ficou ali, sugando, até dormir, bebendo goles imensos, metade ar, metade leite. Ficamos nos admirando, orgulhosas de nós. E teus dedos pequenos, apertadinhos, com aquelas unhas que pareciam folhas muito finas de papel vegetal contrastando com o cabelo preto, cheio, farto. Éramos nós ali, eu sei. Éramos nós e era minha mãe, minha avó, as outras, todas juntas num só olhar. E estávamos cobertas de felicidade, porque mesmo nunca tendo te planejado, eu te quis naquele instante, ali e para sempre, nascemos mãe e filha enquanto ficamos nos olhando, um parto de uma noite toda.
Nossas fitas mergulharam como uma nos nossos castanhos, mas já era dia, e nos deixamos permanecer tranquilas e seguras com a mira aberta até sentir as pálpebras pesadas, até ficarmos sonolentas de paz, morando juntas para sempre e até amanhã.
@jaquemachadoescritora
Emocionante viajar em sua aventura de ser mulher, ser deusa, gerar vida.
Nós homens, nunca, nunca viveremos e por isso nunca entenderemos esse turbilhão.
Ser pai é algo extraordinário de maneiras diferentes. Forte abraço e obrigada pela leitura!