Conto da Maturidade

Por Victor Fernando

Pé ante pé íamos indo, mansos, como se nossos corpos fossem feitos de algodão, leve, leve. Eu, uma garota de onze anos e ele, um garoto de dez anos.

       Fomos apresentados quando éramos recém-nascidos. Quando grávidas, nossas mães conversavam todos os dias, às tardes, em um café que havia no centro da cidade. Aqueles momentos eram mágicos para as duas, minha mãe contava. Trocavam segredos e angústias uma para a outra, sem o medo de julgamento e juraram que viveriam juntas quando dessem à luz. Elas também foram apresentadas quando recém-nascidas. “Será isso coincidência?”, me questionava sempre. “Não. Não é obra do acaso: o destino nos uniu. É o nosso dever, com o nosso propósito, ficarmos juntos. Não podemos nos separar, vai saber o que ele nos reservou caso isso aconteça. Não. Vamos viver juntos para sempre.” Inocente, mal sabia eu o que nos era reservado.

       A manhã que escolhemos para comer as maçãs direto da árvore era radiante. Não, na verdade era esplendida como nunca. Ouvia-se o som dos pássaros.

-Será um rouxinol? – Ele sabia que era um rouxinol, mas queria a minha afirmação. – Ou um canário?

-Meu amigo, isso é um rouxinol, e você bem sabe. Agora, me ajude a subir na árvore.

       Nossas peripécias de crianças nunca tinham fim. Quando eu fizera doze anos decidimos que fugiriamos para assistir apeça Hamlet, há duas semanas eu falava dessa peça. Li todas as traduções do livro e decorei cada frase marcante. Junta de meu amigo, passávamos horas no jardim encenando, cada um ficava com mais de um personagem de uma vez. Às vezes eu era rainha, Hamlet, Horácio e Marcelo; enquanto ele era o rei, Laertes e Polônio. Muitas vezes os papéis se invertiam e entravam nessa dança nossos cães e gatos, que faziam os outros papéis, e a tarde ia assim. Quando meu amigo fez os seus doze anos, eu já tinha treze. Nós queríamos saber o gosto que tem um beijo, que tanto liamos nos livros, mas só naquela idade foi despertado em nós o interesse. Então, começou nossa saga em busca do sabor que tem os lábios se encostando. Certa noite ele chegou em minha casa segurando um sapo e perguntando:

-Que tal você e eu beijarmos esse sapo? Acho que não faz diferença. – O pobre sapinho debatia-se como nunca, mas desistira e ficara parado, encarando-me.

-Você ficou louco? Eu não vou beijar esse animal e tambémnão deixo você fazer isso. – Cruzei os braços e fiquei estática, impedindo sua passagem para dentro de casa como forma de protesto.

       De repente começou a chover e eu lhe impus uma condição para que entrasse: o sapo ficaria do lado de fora e nem eu nem ele beijaríamos aquele animal. Enquanto caia uma chuvarada, ficamos trancados no quarto, inquietantes, ansiosos para que ela passasse e enfim pudéssemos brincar nas poças que se formavam e respirar o ar do pós-chuva.

       Deitado na cama ele me perguntou:

-O que acontece com a gente quando ninguém está nos olhando?

      Por que ele teria feito aquela pergunta?

-Eu lembrei do sapinho lá fora. Coitadinho. Será se ele virou outra coisa quando o largamos sozinho? Ele pode ser o filho de outros sapos. Talvez estivesse estudando para as provas, ou ansioso para chegar em casa e ler um livro, ou quem sabe a partitura de uma música. Será que esse coaxar não seria a sua melodia, ou a melodia de outros sapos que também tem suas vidas? Ele é feliz com sua triste condição de sapo? Talvez ele sonhe em um dia visitar a cidade grande dos outros anfíbios.

       Fiquei parada e em silêncio olhando para ele. Aquela última pergunta me incomodou. “Será que ele é feliz por ser um simples animal, que luta pela sobrevivência?”, me questionava. “Serão os sapos os sortudos por não terem a consciência de existirem, ou são atormentados pela certeza da morte e o seu coaxar é a música que cantam para afastar suas tristezas? Por que eles têm que viver assim? É o seu destino viverem assim? Quem escolheu isso a eles? É tudo obra do acaso?” Todas essas dúvidas passaram como o bater de asas do beija-flor.

-Ora, que pergunta! Deixe isso de lado. Olhe, a chuva começa a acalmar. Vamos, precisamos nos preparar.

       No dia seguinte a isso, minha mãe me chamou e avisou que dois primos viriam passar duas semanas conosco. Vi nisso a nossa oportunidade. Corri para avisar meu amigo. Quando cheguei em sua casa, ele estava sentado na sua cama, olhando a paisagem pela janela. Um lindo pôr do sol acontecia no horizonte, com todas as suas tonalidades de laranja e amarelo, as vezes um verde fraco. Quando contei, ele saltou e me abraçou de tanta felicidade. Mal podia esperar o dia chegar.

        Passou-se uma semana e o dia chegou. Eram dois jovens garotos, um dia quinze e o outro de quatorze. Eram altos e bonitos, com largos ombros e uma pele que mostrava que eram zelosos com os seus corpos. Quando chegaram, meu amigo e eu fomos nos apresentar. Estávamos tímidos e atrapalhados, pois não tínhamos o costume de receber visitas. Estávamos acostumados com a presença somente de nossos pais e de nós dois. As nossas casas ficavam em uma região isolada de tudo. Era preciso uma hora de viagem para se chegar ao hospital mais próximo. Nossas famílias se juntavam para fazer as compras. Todo o começo do mês eles faziam a sua viagem à cidade e traziam caixas e mais caixas de comida e outras coisas. Meus primos perceberam nossa inquietação e com isso foram compreensíveis e amáveis.  Eles chegaram na hora do sol se pôr. Estavam exaustos e foram dormir.

       Acordaram na manhã seguinte. Ah, como eram belos aqueles dois anjos que deram o ar da graça na minha humilde casa afastada de tudo, tão sozinha. Encontramo-nos na cozinha e conversamos sobre todas as matérias da cidade e do campo, sobre a beleza e também sobre o bem e o mal.

-A cidade em que vivemos é grande, cheia de prédios que nos perseguem com seus olhares, quase a ponto de devorar-nos. Na verdade, a cidade toda, com todo o seu hedonismo e sua superficialidade, nos engolem num delicioso banquete.

-Não parece agradável como nas histórias que leio. – Confesso que naquele instante, ao ouvir essas palavras, fiquei horrorizada. Eu não quero me perder em um lugar como aquele. – Aqui, isolados, conseguimos viver tranquilos, sem sermos interrompidos e atrapalhados. Lemos os livros, conversamos e à noite vemos as estrelas no céu. Podemos ser nós mesmos. Não há prédios que nos perseguem e nos engolem, ou cidades vivas que fazem banquetes.

-Mas vocês gostam de viver assim, ou não gostam? – Aquele olhar me paralisou de medo. Oh, como desejei sair correndo, sem olhar o rosto daqueles rapazes. A pergunta que o mais velho fez foi tão terrível para mim, que não pude responder por alguns segundos. Segundos que passaram como uma eternidade. Será se era realmente feliz naquele lugar? Aquilo era o que eu realmente queria? Quem sabe a experiência dos prédios me engolindo e do banquete da cidade viva não seriam más ideias. Mas e o nosso destino? Nossas mães foram apresentadas quando recém-nascidas e cresceram juntas, a mesma coisa aconteceu conosco. O sapinho não tinha escolha, era seu destino viver daquele jeito, a mesma coisa acontece com os seres humanos: o destino nos enlaça e não há como escapar. Assim como aquele sapo, não nos é permitido escolher.  Tentei disfarçar o horror que me deixou aquela pergunta e respondi, firme e certa:

-Gosto. Não consigo me imaginar em outro lugar a não ser aqui. – Maldita mentirosa. Mil vezes maldita. Não, você não queria isso. Naquele momento começava a devanear sobre minha vida.

-Ah, que sorte a sua. Eu odeio a cidade e daria de tudo para poder viver em um lugar como esse. Aqui vocês têm liberdade. – Aquelas palavras foram o machado para cortar o fio que me separava da vida que até em tão seguia e a vida que desejava inconscientemente desde sempre. Sim. O que eu mais desejava naquele momento era abrir asas e voar pelos céus, descobrindo lugares novos, experimentando sabores e desgostos. Eu queria a sensação dos prédios me devorando, queria me perder na selva da cidade grande. Não há liberdade em um lugar isolado como aquele. Para o inferno com meu destino. Já me foi dado o fardo de nascer, pois que seja para viver de forma autêntica.

         A conversa continuou assim: em cada frase dita pelo mais velho, mais me tornava ciente da minha falta de potência. Deixei o café e fui me arrumar, pois queria comunicar todo o acontecimento para meu amigo. Quando cheguei ao seu quarto, encontrei-o frente ao espelho, experimentando a roupa que mais lhe caia bem para chamar a atenção dos meus primos. Olhei-o no olho, e dei-lhe um beijo. Nossos lábios enfim se tocaram e essa primeira experiência logo trouxe uma consequência desagradável e que me tiraria noites de sono por anos. Ele empurrou-me para longe e exclamou, enfurecido, que estava apaixonado pelo meu primo mais novo e que ansiava pelo seu primeiro beijo acontecer com ele. Como foi difícil escutar aquelas palavras! Estraguei uma experiência que era tão cara ao meu amigo!

       Depois disso não nos falamos mais, com exceção de poucos momentos, mas por pura formalidade, no ano novo e no natal. Crescemos e nos separamos, cada qual para o seu lado: eu fui seguir meu sonho de ser uma experimentadora e ele foi à procura do primeiro beijo com um grande amor.

 

.

 

.

                            

Victor Fernando, tem 19 anos, mora na cidade de Timon, no Maranhão (ao lado da capital do Piauí). Nascido em 22/07/2002, na mesma cidade em que mora. Sempre foi apaixonado por criar e contar histórias. Desde os 10 anos, escreve algumas histórias e poemas. Já se aventurou pela composição de letras de músicas e roteiros de peças. Atualmente cursa filosofia na Universidade Federal do Piauí e seu sonho é ser escritor de contos, romances, novelas e também de algumas peças teatrais, além de ser professor universitário. O que mais o inspira a escrever, é a vontade de pôr seus pensamentos e visão sobre tudo, no cenário nacional, e assim mudar, ou pelo menos colocar uma semente da mudança para que no futuro ela possa germinar o Brasil.  Suas maiores inspiração literárias são Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Stendhal, mas também conta com o auxílio de Carl Gustav Jung e Max Stirner.

 

.@viictusviana

3070cookie-checkConto da Maturidade

12 comentários sobre “Conto da Maturidade

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.