COLECIONADORES: LOUCOS MANSOS
COLECIONADORES: LOUCOS MANSOS.
Antônio Pimentel
De onde vem o impulso de colecionar? Pesquisei e vi que existem muitas teorias sobre o colecionismo, a mania de reunir coleções. Teorias complexas. Um assunto aparentemente banal é objeto de estudos e marca fortemente as sociedades humanas. O ímpeto de colecionar está na base do desenvolvimento científico, fez avançar a biologia, foi ponto de partida para pesquisas importantes, deu origem aos museus e gerou muitas esquisitices e absurdos.
Para alguns estudiosos, a mania de colecionar está ligada ao sentimento de grupo, de pertencimento, e a outras possibilidades: competição, desejos não realizados, vontade de se isolar do mundo e ser capaz de comandá-lo, com organização e classificação de bugigangas. Há quem diga que colecionar é uma tentativa de escapar da morte. As coleções nos livram da impotência diante dos dinamismos da vida. Colecionar é esforço de retenção, uma luta para se manter atado ao mundo. Acho tudo isso mirabolante.
Em algum momento da vida, creio que todos nós fomos fisgados pelo colecionismo. Colecionar já foi mania minha. Investi em coleções de maços de cigarros, bolinhas de gude, chaveiros, figurinhas e selos. Passatempos. Num impulso que tem a marca de colecionadores antigos, gente que contribuiu para o desenvolvimento científico, fui um modesto colecionador de borboletas. Com um puçá de filó, corria atrás de borboletas no meu bairro, quase um explorador inglês. O desafio era pegá-las sem estragar suas asas. Mortas com clorofórmio e espetadas com alfinetes, as borboletas eram expostas com orgulho. Não fui longe com minhas coletâneas. Quem foi, com método e zelo, pode ter alcançado dinheiro e fama. Fama de maluco, muitas vezes.
Tenho notícias de um vizinho, jovem ainda, dono de um baú com reservada coleção. Algum familiar dele, intruso, abriu o baú e revelou o segredo do colecionador: calcinhas femininas, dezenas delas. Fico imaginando esse rapaz, um discípulo do cantor Wando, apreciando seu acervo: calcinhas espalhadas pela cama, organizadas por cores e modelos; calcinhas-troféus surrupiadas de gavetas de bonitas usuárias ou roubadas nos varais. O jovem usava as calcinhas? Não, isso é coisa de novela. Colecionador cultua seus objetos, com respeito e cerimônia. Daí sai uma lição: colecionar tem forte dose de fetichismo. Todos os objetos colecionados são fetiches.
Três outras figuras inusitadas: o holandês Niek Vermeulen coleciona sacos de coleta de vômito em aviões. Tem uma coleção com 6.290 saquinhos de 1.191 companhias aéreas de quase 200 países. O islandês Sigrdur Hjarrarson criou um museu para expor sua coleção de pênis de mamíferos: 276 pênis de 46 espécies. A notícia não esclarece se o homem está representado no museu. Destaque também para Imelda Marcos, mulher de ditador filipino, que tinha uma coleção de 3.000 pares de sapatos. Li que cupins devoraram o acervo da ex-primeira dama e centopeia. Esses bizarros ajuntadores não estão sós. Existem colecionadores de pedras de rim, embalagens usadas, múmias, fetos, cobras, dentes. O faraó Tutancâmon, no antigo Egito, tinha uma coleção de cerâmicas finas. Ou seja, essa mania vem de longe.
As expedições europeias no período das grandes navegações eram incumbidas pelos nobres de trazer coisas exóticas das terras de além-mar: conchas, moedas, aves, répteis, múmias, artefatos diversos, plantas, frutos e até gente. Zelosos representantes reais amealharam variadas coleções, que deram origem a gabinetes de estudos de espécies na Inglaterra e França, particularmente. As pilhagens mundo afora foram fundamentais para o estudo da natureza e dos povos e desembocaram na criação dos museus do Louvre e Britânico, e muitos outros.
Não posso encerrar sem uma referência a um colecionador magnífico: o bibliófilo José Mindlin, que legou à USP e à sociedade brasileira um acervo de 38 mil livros, com muitas raridades. Ele dedicou a vida à sua coleção e definiu bem o espírito do colecionador: “Eu chamo essa compulsão patológica pelos livros de loucura mansa. Mas não sei como viveria nesse mundo se os livros não existissem”.
Os colecionadores fazem história. Deixam legados importantes. Personificam narrativas sem fim. Coleções são eternamente incompletas. A completude seria a morte dos verdadeiros colecionadores. Mesmo diante da aquisição de uma peça raríssima, eles não se dão por satisfeitos. Desejam mais e mais, com inesgotáveis espíritos de fuçadores e ajuntadores. Seres apaixonados e atormentados. Loucos mansos.
@antoniopimentelbh
31/07/22