CINEMA DE BAIRRO: FASCINAÇÃO E CONVÍVIO COMUNITÁRIO.
CINEMA DE BAIRRO: FASCINAÇÃO E CONVÍVIO COMUNITÁRIO.
Antônio Pimentel
Os cinemas de bairros sofreram o primeiro golpe com a popularização da televisão. Os poucos que resistiram foram atropelados pelos cinemas de shoppings. Perderam a clientela e agonizaram. Fecharam as portas e suas salas foram engolidas por igrejas evangélicas, estacionamentos e depósitos de materiais de construção. Foi assim em Belo Horizonte. Uma transição que aconteceu entre as décadas de 1970 e 1980. “Assim caminha a humanidade”.
Na Gameleira, meu bairro, e no Calafate, bairro vizinho, dois cinemas imperavam. O São José e o Eldorado. Meus pais frequentaram esses cines quando namoravam e a ida ao cinema era uma atividade exigente, com roupa adequada, penteado, cuidados para ver e ser visto. Minha mãe tinha saudades dos filmes que assistiu, desde a juventude, na sala chique do São José. “Rebecca, a Mulher Inesquecível”, “Crepúsculo dos Deuses”, “Cantando na Chuva”, “Sabrina” e “Um Lugar ao Sol”. O cinema americano tomava conta das telas e encantava. Tempo de sonhar com Lauren Bacall, William Holden, Gene Kelly, Joan Fontaine, Tyrone Power, Lana Turner, Gary Cooper e tantos outros. “A noite americana”.
Frequentei muitas matinês nos cines São José e Eldorado. A televisão começava a se instalar nas casas, mas o cinema ainda cativava muita gente, mesmo sem o luxo antigo e já batizado de pulgueiro ou pulguinha. Demorei a ter acesso regular às sessões noturnas, soirées, quase sempre classificadas para maiores de 18 anos. Às vezes, conseguia entrar na cara de pau, contando com a vista grossa do porteiro. Falsificar carteira de estudante era outra saída. Quando vi Brigitte Bardot nua, deitada de bruços, movimentando suavemente os pés, achei uma beleza. Nunca me esqueci daquela nudez. “E Deus criou a mulher”.
Os filmes de faroeste eram os preferidos. Ver a cavalaria americana chegar a galope, espantar e matar índios era o clímax. Gritos, imitações do tropel dos cavalos, dos tiros e do toque de corneta da cavalaria tomavam conta da sala. Agito geral. As flechadas certeiras, a vida na selva e o escalpelamento de brancos eram pontos altos dos índios. Duelos entre mocinhos e bandidos provocavam vibrações e imitações nas brincadeiras da turma. Corpos inclinados, cinturas flexíveis e braços arqueados marcavam o bom duelista. John Wayne, Burt Lancaster, Kirk Douglas e Yul Brynner foram heróis. “Era uma vez no oeste”.
Outro momento marcante da sessão de cinema era o início da projeção. Três apitos e luzes apagadas. A abertura das cortinas e o surgimento do condor na tela, aquele urubuzão no alto de uma montanha. A plateia espantava o bicho com sonoros “xô, xô, xô” e assobios. A brincadeira era repetida e manjada, mas quando o bichão voava, a gente aplaudia e ria. Contavam que um sujeito conseguiu entrar no Cine São José com um urubu numa sacola e soltou o bicho na hora do condor. É possível. “Os pássaros”.
A morte do cinema de bairro foi o fim de um ponto de encontro e convívio comunitário. Perdemos acesso a uma diversão coletiva, barata, próxima das nossas casas. A televisão, aos poucos, cativou nossa atenção. Muitos bons filmes chegaram pela TV. Ver Zorro empinando Silver, seu cavalo branco, e gritando “Aiô, Silver!” era emocionante, mas atividade caseira, sem o agito da galera do cinema. A cavalaria do Tenente Rip Masters, que acolheu o menino Cabo Rusty e seu fiel escudeiro Rin-Tin-Tin, era divertida, mas não tinha a força das cavalarias da telona. A tela encolheu e perdeu magia. Foi o fim da cumplicidade e da participação das plateias. A ilusão foi domesticada. O fascínio esmaeceu. “A última sessão de cinema”.
Os cinemas de shoppings são confortáveis, bonitos, mas cerimoniosos e pasteurizados. Sinto falta dos cinemas de bairros. Saudades daqueles ambientes esculhambados e interativos, uma interação sem a mediação de tecnologias, com gritos, imitações e assobios para espantar o urubuzão da tela. Era uma festa.
The end.
30/07/23