“BlasfêmEa”
“BlasfêmEa”
Jaque Machado
Catavento 2;1
Preciso contar para vocês a história do catavento. Tinha em torno de quatro ou cinco anos. Tinha as pernas muito magras, era espavitada, e pelas caniças, me chamavam de saracura, um pássaro que vivia nos campos ao redor do bairro no qual fui morar. Bairro todo novo, mudanças para todo lado, muros sendo erguidos para dividir as casas, obras e mais obras por todos os lados.
A saracura quarava no charco do outro lado da faixa, mal dava para ver aqueles caniços no meio do pasto. Me chamavam saracura. E eu tinha inclinação por fazer coisas que os outros achavam erradas, na maioria das vezes movida por uma curiosidade irrefreável, noutras, sequer me dava conta do que estava fazendo. Nessa idade eu tinha alguns passatempos, dois deles: me encerrar no banheiro e tirar toda a roupa, depois chupar os braços ate fazer vergalhões, depois usava sempre as mangas longas em pleno verão, dizia que estava com frio; outro era ligar o chuveirinho do banheiro e molhar a calcinha com água quentinha e depois ir andar na minha monareta de quinta mão e repintada, que eu amava.
Ninguém nunca me explicou nada, tudo era feio, e eu sentia que que tinha que me esconder, um sentimento de que qualquer coisa que eu fizesse estava errada.
E eu, saracura, fui brincar na rua numa tarde de muito calor. No bairro novo, homens trabalhavam pavimentando a rua, colocando bloquetes devidamente encaixados. No olho do calor um senhor muito simpático vinha até portão da minha casa pedir água.
A saracura, sem perguntar a ninguém, naquela época as crianças brincavam soltas na rua e passavam o dia longe, só voltavam quando tinham fome. Não sei aonde meu pai estava, talvez cansado, dormindo, depois de um turno detestável dentro de uma viatura a noite toda. Eu levei a água para o senhor trabalhador. Eu lembro dele muto bem, cabelos brancos e ao mesmo tempo uma careca rasgando a testa e o topo.
E ele era muito engraçado. Adorava contar piadas. Os dias foram passando e nos tornamos amigos. Ás vezes parecia que saía do trabalho só para vir conversar comigo. me achava muito especial e ficava muito feliz com aquela alegria, contava piada por uma, duas horas. Nunca soube o nome dele, mas pediu que o chamasse de vôzinho. Vo^zinho contava piadas, e eu ria. Algumas vezes eram piadas secretas, só nossas.
E o vozinho se dizia cansado e sentava em um tijolo do outro lado do muro da minha casa, que nem reboco tinha. “Senta aqui, no colo do vozinho.”, e eu sentava. E as minhas perninhas de saracura ficavam balançando por cima dos joelhos dele, eu não lembro o que acontecia, mas sei que um dia meu pai viu aquilo. Furioso, correu o Vozinho. Eu nunca mais o vi… Mas sabe, eu sentia saudades dele, sentia falta das piadas e das diversões e achava ele um homem bom.
Curioso… No mesmo dia em que o Vozinho foi embora, eu fiquei chorando. E meu pai me trouxe um catavento de presente. Ele ajoelhou na minha altura, eu tinha um banquinho de madeira que fora do meu irmão, andava com ele pra todo lado, descalcei as setes léguas e imediatamente fiquei curiosa. “Aposto que tu não sabes soprar um catavento…”, ele me provocou, sequei as lágrimas com a manga, um novo brinquedo. “Se você soprar forte, ele vai girar e as cores de cada parte irão formar uma nova. Mas tem que ser forte!”
As hélices se moveram e logo um círculo roxo se formou. Roxo era minha cor preferida. Lembro que meu pai ficou rindo com o chimarrão debaixo do braço. E para onde quer que fosse, levava meu catavento, uma tesouro, minha relíquia. Soprava, soprava, corria com ele pelo pátio pra fazer o vento soprar o roxo.
Um dia tive uma tristeza repentina e aparentemente sem explicação, eu não sabia dizer o porquê, fui para trás do muro onde o Vozinho costumava me contar piadas, sentei no mesmo tijolo e fiquei soprando o catavento, soprando, soprando desesperadamente, até ficar sem ar… Soprei até secar as lágrimas, com os joelhos encostados um no outro e tremendo, eu não sabia que as minhas perninhas de saracura iriam demorar, ainda dez ou doze anos, para se tornarem pernas de mulher.“
@jaquemachadoescritora