BlasfêmEa

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Jaque Machado

Confissões e Gênesis 1:1

Então vi descendo do céu um anjo que tinha nas mãos a chave do abismo e uma corrente pesada. Ele agarrou o dragão, aquela velha cobra que é o Diabo ou Satanás, e o amarrou por mil anos. Então o anjo jogou o Diabo no abismo e trancou e selou a porta para que ele não enganasse mais as nações até terminarem os mil anos. Depois desses mil anos é preciso que ele seja solto por um pouco de tempo.

Apocalipse 20;1.

Você precisa avançar alguns milhares de anos no tempo agora, provavelmente o cosmos vá girar ao seu redor e dentro de você, ficará tonto e com câimbras. Seu corpo inteiro vai estremecer. Mas pára, agora, bem aqui.

Onde e quando?

Imagine fitas cassete, mastiguitas, Uma linda Mulher, shampoo Darling, a série Cosmos e cascos retornáveis.

O que Importa agora é este evento, neste lugar onde a escuridão caía até os joelhos e abaixo na saleta, ali jazia o abismo. Um basculante fechado, de no máximo cinquenta por cinquenta sem nenhuma ventilação, a única fenestra do cômodo atravessada por luz estava fechada há anos, a claridade do dia descia fendendo o breu, incidindo diagonalmente sobre o padre, a cabeça dele iluminada em um facho de sol, aqueles onde a poeira dança. A peça cheia de quinquilharias, depósito de materiais de limpeza da igreja, acima do coco dele tinha uma peneira pendurada no teto, parecia uma auréola quebrada. Ele lançou uma baforada de fumaça do charuto no ar, tossi, tentei segurar mas não deu. A santidade ainda ficou brincando, esticando e encolhendo os lábios, a bata levantada sobre os joelhos deixava à mostra as meias pretas de futebol da Mesbla, esticadas muito acima das canelas, os dedos dos pés deveriam estar sofrendo no aperto. Eu ali sentada à frente dele, toda vestida de branco, que era um tubinho de lã da minha irmã, usado em bailes na adolescência, meia calça translúcida da cor champagne, a minha mãe tinha essa meia há muito tempo e foi gentilmente cedida para a noivinha de Deus. O primeiro sapato de salto da vida estava nos meus pés, emprestado da prima da mãe. O cabelo encaracolado atado atrás nuca, cheio de arames torcidos e forrados de branco num arranjo floral com glitter. O que cintila azul. Antes de sair de casa lembro de olhar no espelho meu reflexo orgulhoso, mas não olhava por muito tempo, o suficiente para admirar a mocinha que havia terminado a catequese.

“Qual o seu pecado, minha filha?”

Era uma pergunta ou uma acusação? Meu pecado… Uma menina de onze anos, que pecado poderia ter? Escondi um copo quebrado e neguei veementemente tê-lo feito? Menti que gastei o dinheiro da mesada em merenda, mas foi em papel de carta? A nota ruim na prova que não falei? O que era um pecado para mim? Ou melhor, o que era um pecado para ele, o representante de Deus na Terra? Queria agradá-lo.

Estava demorando para sair uma resposta, o padre arrumou o óculos sobre o nariz.

“Há quando tempo não se confessa, minha filha?”, tinha um ar preocupante naquela pergunta.

Onze anos. Nunca havia me confessado. Fiquei arranjando uma resposta aceitável na minha cabeça, devia ser inadmissível nunca ter me confessado e não podia ser a pessoa, ali diante de Deus, que estava errada.

“Me confessei faz uma semana, padre.”, fiquei nervosa, decepção sobre mim era algo que não poderia suportar.

Só que agora havia mentido, eis o meu pecado. Baixei a cabeça e fiquei olhando as minhas coxas embaladas na meia calça da minha mãe, tinha um vão entre elas, por causa dos meus joelhos tortos, debaixo o escuro abismo da sala. Na minha cabeça, ignorando toda a complexidade da hora, começou a tocar I Must Have Been Love, tava acontecendo de novo… O meu cérebro não me obedecia. Repreendi mil coisas. Não deveria usar um vestido tão justo e curto numa cerimônia de sacramento.

“Muito bem, agora me conte como pecou.”

Eu tinha pecados, ele mesmo afirmou que havia infringido as regras de Deus, a verdade é que eu era uma mentirosa, uma assanhada e desonrava meus pais.

“Eu menti, padre.”, saiu como um tiro.

“Mentiu o que?”, ele continuava lançando a fumaça no ar tranquilamente, só que agora servia vinho de garrafão em um copo.

“Menti que me confessei.”

“Mentiu para mim, agora?”

“Sim, padre. Menti”

“Mas sabe que se mentir para mim, estará mentindo para Deus, não é?”

“Sim, padre. Perdão.”

“Não se desculpe…”, quando disse isso quase senti alívio, “… porque terá que se desculpar a si mesma, pois quando mentimos para o onisciente, só estamos mentindo que mentimos, estamos enganando a nós mesmos.”

“Tenho que rezar alguma coisa então, como castigo?”, seria um peso fora das costas.

“Castigo não, minha filha, penitência. A penitência, para que entenda nas suas palavras, seria um autocastigo. Ninguém que não queira ser perdoado o será, ninguém que não queira a remissão dos próprios erros o alcançará. A penitência serve a quem aceitá-la, e sendo frutífera, tudo será melhor. Não igual ao que era antes, mas melhor, porque aprende-se a grande lição: o erro pode nos colocar no caminho certo, se não erramos não sabemos se nosso caminho é o certo.”

“E o diabo?”

“Que tem ele?”, o padre deitou o copo sobre a garganta e engoliu todo o vinho num único gole.

“Se ele aceitar a penitência não deixa de ser Diabo?”

O padre girou a cabeça para largar a fumaça em outra direção, ficou olhando de canto de olho, desconfiado. Muita pergunta.

“O diabo é o diabo, não porque não se arrependeu, mas porque ele é mau. Reza o terço, que Deus esteja contigo”.

Levantei devagar, ainda sem saber para que lado ir. Fui para o salão. Com o terço entre as mãos, ajoelhei diante da Cruz da comunidade, o Cristo ali estrebuchado.

Não tinha pressa de começar a orar. “O diabo é mau”… Era a razão que o impedia de ser absolvido. Ele não tinha solução. Mas o que era ser mau?

O Cristo está pendurado numa cruz a sangrar eternamente diante de todos aqui, não é maldade? “Por que tudo aqui me faz temer?”, pensei, era uma dúvida genuína.

O homem mais bom de todos ali: “Te arrepende de teus pecados e teu será o reino dos céus”, ele disse. Eu me arrependia dos meus, todo dia. Todo santo dia! Nem sabia como era o reino dos céus o suficiente para querer ir para lá, eu rezava e me compungia porque o meu medo era do inferno.

“Perdão, senhor Jesus, eu pequei”, meu cérebro deu voltas em várias mentiras insignificantes antes de encarar o que devia, senti um certo conforto em me confessar diretamente para o filho de Deus e não para o cara do vinho e charuto na área de serviço, ele ali na cruz, daquele jeito… Morreu para salvar a todos de seus próprios pecados… Ele iria entender!

“Eu faço xixi na roupa, mas não é xixi. Eu minto para que ninguém descubra que eu sou uma pessoa ruim e eu gosto de uma menina de um jeito diferente e como três sacos de chips escondida, um atrás do outro. Cristo, eu faço coisas vergonhosas na maciota. Primeiro eu só sentia que era bom, depois sentia que era errado, agora tenho certeza que sou uma pecadora.” Fechei os olhos e fiquei esperando uma resposta.

Evoquei Jesus e nada.

Ele estava cagando para os meus pecados.

Senti raiva, ódio, queria ir para a rua, mas a única saída era a porta do salão, cheguei perto. Uma enorme corrente trancava o lugar, brilhante, elos da espessura do meu dedo, um cadeado de um palmo selava as abas. Portas de madeira que pareciam do dilúvio de tão velhas, esses, cadeado e corrente, sentinelas ali… Só então tudo fez sentido na minha inocente cabeça de criança, faltavam 989 anos para que besta fosse solta, era isso. Não tem perdão pro Diabo, por mais que se arrependa. Nem Jesus quer escutá-lo.

Olhei para trás, o Cristo estático e sangrando eternamente sobre o altar. O que o padre não sabia é que os mil anos nem haviam passado, a besta nem era besta, era só uma criança que cresceu trancada, não pode nada, tudo é feio. Talvez tenha virado besta por causa disso tudo aqui e fugiu quando percebeu que o grande artifício que a mantinha cativa era um cadeado e correntes fechados por dentro. A sua penitência.

Se foi um anjo que trancou a besta ali e a porta está fechada por dentro, logo as chaves estão nas mãos do anjo. Lúcifer é o anjo. O diabo é um anjo.

Olhei por cima do ombro uma última vez para o interior escuro do salão da igreja, nada modificaria, a mudança não estava ali. Adeus penitência!

Abri as portas, a luz cegou minhas vistas, o mundo inteiro, maravilhoso e brilhante. Os passarinhos cantavam, pessoas riam e escutavam música no toca-fitas de Chevettes, Monzas e Veronas. Torci o pé na brita do calçamento, descalcei o sapato branco da noiva. A caminhada estranha ficou intensa, crianças brincando na rua enquanto algum 3 em 1 tocava Ace Of Base a todo pau, cheiro de churrasco vindo de todo lado, o vento foi cortando o vestido branco de lã bem justinho e meus cachos castanhos voavam e pulavam como molas vivas, corri pelas ruas do bairro e cada coisa era novidade, ri de ser criança e não sentir culpa, pela primeira vez na vida.

Burning Down the House seja abençoado, nunca mais voltei lá, nossa senhora de Fátima que me perdoe se existir, mas eu estava só começando a ser livre naquele instante, eu era o diabo, não devia explicações para ninguém.

@jaquemachadoescritora

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