Augusto dos Anjos e a exaltação da Natureza
Augusto dos Anjos e a exaltação da Natureza
Chico Viana
Costuma-se destacar no “Eu” apenas o desencanto existencial e a fixação na deterioração da matéria. Articulado ao polo de tristeza e pessimismo, no entanto, existe na obra de Augusto dos Anjos uma dimensão oposta, de erotismo e alegria. Nesse plano nem tudo se resume à fixação na morte e à apologia do verme, sendo possível perceber em algumas passagens a satisfação com a vida e a exaltação da Natureza – a mesma Natureza que em outros momentos aparece como a “velha madrasta” a cujas leis o homem está acorrentado.
Geralmente essas passagens aparecem no final dos poemas longos e se ligam ao registro do amanhecer. Elas se sucedem às elucubrações noturnas do eu lírico e constituem um contraponto à insônia que lhe patrocinou negros e confusos pensamentos – como acontece, por exemplo, no final de “Tristezas de um Quarto Minguante”.
O poema é uma descrição realista dos temores que assaltam o eu poético sozinho, na noite do engenho, a pensar sobre a morte e ver dela os reflexos nos objetos que o circundam. É um bom exemplo de como em Augusto se concretiza a angústia metafísica e seu correspondente corporal –a dor psicológica. Em vez de traduzi-la por referências abstratas, o poeta lhe dá consistência física e material, revelando-lhe os efeitos por meio de um vocabulário simples, semanticamente tangível, e do apelo a impressões sensoriais – sobretudo tato, visão, audição.
Depois de referir o insone pesadelo, que lhe trouxera dúvidas sobre a própria sanidade mental, o poeta vê confundir-se com o dia nascente o fim dos seus tormentos. Os olhos que contemplaram as aberrações noturnas despertam para outro cenário, no qual a Natureza em seu ímpeto vital – e não mais como geradora de culpas e medos – é que comanda o espetáculo. Eis como se dá a transição de um momento para o outro:
Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.
(…) De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelo mata-pastos.
É patente o erotismo da cena acima descrita. O melancólico a quem repugna no homem o ato sexual, fonte de prazer mas, sobretudo, meio de propagação da espécie decaída, exalta a cópula entre o sol e o mato verde que a ele “se entrega” resfolegante e feliz. O erotismo descritivo, confinado à linguagem, parece aí compensar a interdição sexual promovida pelo sentimento de culpa, que faz em outro poema o eu lírico abominar o “monstro” do prazer e ver na tristeza a sua “única saúde”.
A despeito de tal concessão erótica, contudo, homem e Natureza aparecem como coisas distintas e mesmo inconciliáveis, conforme sugere a “diversidade” que o poeta surpreende entre ele e esse caramujo que “naturalmente” (sem a afetação e os receios dos humanos) cruza o mata-pastos.
Um dos mais intensos conflitos que se percebe no Eu, com efeito, é o da relação entre o homem e a Natureza, a consciência e o instinto, a alma e o corpo. Sendo o que liga o homem ao sexo, ao desejo, a Natureza é nele a parte pervertida. Daí que ela só possa ser exaltada – como nos versos acima transcritos – enquanto dimensão extra-humana, vinculada à terra e aos bichos. Fora do homem, a Natureza é verdade e beleza. Dentro dele, é marca de rebaixamento perante a Criação.
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