“Anjo da Morte”

Capítulo 2; versículo 4

 

“Anjo da Morte”

Jaque Machado

Acho que estava na rua há umas duas semanas direto, morando numa barraca de camping. Fazia parte do ritual junkie da manhã ao acordar: tomar um dedo de cachaça e fumar um cigarro. O calor se tornava insuportável depois que o sol nascia, não tinha como dormir debaixo da lona de dinossauros processados. Passava a noite acordada, então quase não descansava naqueles dias. Na frente do camping tinha um trailler e ao redor, malucos espalhados tocando violão sem parar. Esses hippies nos acampamentos nunca são os mesmos, estão sempre viajando, então fica difícil encontrar os mesmos reunidos. Mas alguns, os mais maneiros, ou os piores, todos conhecem. Eu era novata ali. Sangue fresco, novidade, sempre tinha alguém me procurando e querendo bater um papo.

Nas costas carregava uma flauta e um pano cheio de arames torcidos, que chamava de arte, mas usava aquilo para ter dinheiro e vendia aquelas pedras incrustadas em voltas de ferro, que iriam enferrujar no primeiro banho, na base da lábia. Gente de fora chama esse nicho particular da vida em sociedade de movimento Hippie. Nós nos chamávamos internamente de “Malucos de BR”. Nada de hippie em vender os arames e viver de uma fiolosofia que se assemelha a um parasita social. Nada a ser construído ali, coletivamente um fracasso, porque roubavam uns aos outros, havia estupro, violência de gênero e… nenhuma proteção contra doenças sexualmente transmissíveis. Um negacionismo sem fim e teorias da conspiração das mais esdrúxulas, por exemplo: a BCG servia para transformar as pessoas em animais civilizados e a água tem um composto, o flúor, para deixar as pessoas alienadas. Sem comentários. Eu fazia parte disso, não concordava com essas coisas, mas embolava com essa galera.

Enquanto alguém tocava violão, peguei a minha flauta, uma dessas baratas, de lojas de R$ 1,99, só que trabalhada no durepox. Câncer. Depois recebia uma camada gentil de anilina com terebentina. Câncer de novo. Tocar aquilo e fumar um cigarro… Muito natureba, não é? Engraçado, porque a história que usava para vender aquelas flautas era uma grande mentira, assim como essa que contava para mim mesma, de que os desenhos nela representavam o nascimento do mundo, as estrelas explodindo e Deus e a vida… mas era só um desenho abstrato de uma mandala de um livro do Paulo Coelho. Uma pessoa comum dizendo isso não passaria hoje de um seguidor de jovem místico, mas dito por um “hippie”, soava uma verdade fundamental. Depois daquela cantoria e da criação de uma atmosfera paz e amor, todos os malucos de lá já estavam muitos bêbados e drogados, uma vibe aparentemente legal, mas não havia nada maneiro em viver por viver uma parada autodestrutiva sem limites. Depois. segui com o “pano” para um lugar chamado “pedra”, uma gíria que identifica o ponto onde a galera estende os artesanatos e senta para fumar e vendê-los. Existe nesse meio um orgulho esquizóide, como em todo grupo social que tem uma identidade rígida, se foge-se um pouco dos dogmas, acaba-se sendo ostracizado. Se torna um pária. Nova ali, não sabia ainda quem era o párea, e como nunca soube abordar pessoas, minha tática de conexão sempre foi sorrir, sorrir muito, para todos, porque tinha essa necessidade de ser aceita ali e me provar.

Foi aí que um maluco chegou de mansinho e eu… sorri.

“Massa esse trampo”, tinha um sotaque castelhano, pegou a flauta e ficou girando na mão magra cheia de anéis de latão. A pele morena, cabelo longo, fartas sobrancelhas grossas e escuras. Olhos tão pretos que não conseguia ver a pupila direito. Sobre o corpo uma camisa branca de linho, um short jeans todo gasto, os pés descalços. No pescoço, cordões e mais cordões. Tudo é papo para um maluco, até o silêncio é papo.

Fiquei observando os cabelos dele balançando no vento quente, o sol dando na minha cara, fazendo retorcer a fuça toda. Apoiei a mão na testa.

Não senti necessidade de dizer nada, observar era suficiente. O cara soube que minha atenção estavanada, foi aí que pegou a flauta e tocou uma música horrível, mas que parecia maravilhosa naquele momento. No lance dessa comunidade existem músicas que só são tocadas por quem é do movimento, é mais ou menos assim que se reconhecem, hinos de estrada. Ele tocou um, me recuso a lembrar agora. Ojeriza.

Aquela flauta de um e noventa e nove parecia uma trombeta angelical na boca dele e o maluco ali na frente um arcanjo entre as nuvens numa anunciação vindo do sol. Ele passou o dia do meu lado, creio que se sentiu à vontade com minha receptividade, fiquei fumando, ele torcendo uns arames enquanto o sol escorregada no céu da praia.

No final da tarde o Anjo havia “trampado” um cordão e colocou no meu pescoço, ficamos nos olhando por mais de um minuto sem parar, olho no olho. Você já olhou uma pessoa assim por tanto tempo? Parece que está conversando com ela, ou está, não sei. Chegou uma hora que não aguentei mais, não conseguia me segurar, tinha que quebrar aquilo, então perguntei qual era o trampo dele.

“Espadas”.

Vocês sabiam que muito do movimento hippie começou em piqueniques onde as pessoas se juntavam para ler O Senhor dos Anéis e cultuar um mundo com menos tecnologia, enquanto se vestiam com roupas semelhantes a elfos e hobbits? Agora sabem. O Tolkien sempre odiou isso, ele tinha razão… hipocrisia. Naquela época eu não tinha ideia, mas eu li “O Senhor dos Anéis” muito jovem, e isso marcou demais todos os gostos da minha vida. Tudo que eu fazia era rondado por esse universo fantástico que sugava minha curiosidade, que costumava remeter para vários objetos que se aproximavam dali. Era uma tentativa de Byfrost para a Terra Média.

Quando o Magrão disse “espadas”, logicamente meus olhos brilharam.

Olhos de uma guria com dezessete anos. Eu não sei quantos anos ele tinha, mas certamente já passava dos quarenta. O que é uma boa idade, porém há que se considerar a diferença de experiências entre duas criaturas que habitam o mundo com essa distância etária. No entanto, quem deu a deixa fui eu, como sempre, a atrevida. “Me mostra suas espadas?”, o pedido mais idiota que poderia ter feito… Agora que tinha dado um sorriso, vendo o peixe morder a isca. E eu vi is músculos se mexendo, quase imperceptíveis, no canto da boca dele, foi aí que fiquei setenta porcento desconfiada.

“Vem”, estendeu a mão, novamente contra a luz, ele foi banhado pelos últimos raios do sol, uma merda romantizar isso. E fui com o maluco.

“Cadê teu pano?”, estávamos pegando uma rua qualquer e ali todas as ruas eram parecidas, com casas de praia e chão de duna batida. Pessoas andando de biquíni para lá e pra cá, carros passando com o som alto, comércios iguais para todo lado. Varandas com redes estendidas e toda sorte de gente de férias deitadas nelas. Fui ficando zonza, não tinha comido nada o dia todo, só fumado. Nesse momento ele pegou na minha mão, como namorados, mas puxei, instantaneamente puxei, como se fosse errado e eu tivesse sido agredida. Paramos no meio da rua, um de frente para o outro, o sol estava indo embora, já não o via cruzar seus raios por detras do cara. A noite começava rosa, mas o rosto dele ficou escuro. Todo cheio de sombras.

“Que foi? Vamos ver as espadas…Vem!”, tentou me puxar enquanto desfarçava um sorriso novo, esboçando confiança, mas uma outra coisa falava por detrás da boca dele e era indisfarçavelmente má. Como o Boca do Sauron: ele fala, mas você sabe que é o necromante ali.

“Não quero mais…”, virei as costas e saí. Cheia de culpa, tomada de um sentimento de violação. Voltei para o meu pano, ainda tonta, mas ganhei um pão de uma maluca campadecida.

Acho que estava visivelmente perturbada, porque aquela comida foi um afeto, vendo toda altercação, ela chegou perto e me abraçou. Também não disse nada, e eu… chorei. Chorei tanto, chorei muito. Chorei e quando percebi, ela estava chorando também, a mesma dor em nós. A A. colocou meu cabelo cheio de dreads e piolhos para trás da orelha e juntamos nossas testas.

“Cara filho da puta.”, falei baixinho.

“Quem?”, ela fungou, mas a voz subiu para um tom de atenção.

“Um cara com sotaque Castelhano e que vende espadas.”, ela ouvia atentamente com os olhos arregalados, “eu ia com ele ver as armas, mas de repente uma coisa horrível veio em mim… eu não sei explicar o que era, só fugi dele. Mas estou me sentindo culpada agora, um lixo…”

Ela baixou a cabeça para encaixar o olhar no meu.

“J., a Mãe Divina te ajudou. O Castelhano (por acaso era o apelido dele), o que faz espadas, um magro… Ele está doente, mesmo. A M. pegou a doença dele, ela tá muito mal. E ele… Não tá nem aí, J., não deixa as meninas usarem preservativo e força você sabe o quê… E outras coisas… Não se sinta mal, tudo tem um porquê. Não era o seu destino, o universo não queria.”

Naquela lógica ilógica dela, alguma coisa fazia sentido, mas ao mesmo tempo não fazia. No cosmos, que é tudo que um dia foi, é e será, já estamos todos mortos. E vivemos ao mesmo tempo em que morremos. Todos nós vivemos a morte a cada segundo, mas ainda é vida. Deixa de ser estarrecedor e desesperador quando entendemos que a morte é algo natural. Não interessa se estamos doentes ou sadios, estamos todos morrendo igual. Esse foi meu primeiro susto de risco de morte. A aproximação real do cosmos vazio, o momento singular onde olhamos as coisas ao nosso redor e pensamos em dar valor a elas. Mas a sensação de perigo, nunca esqueci, ficou palpitando enquanto minha família sequer sabia pelo que passava, tampouco eu. Meu organismo jamais deixou de me lembrar que aquele risco, o limite, o limiar, era sedutor demais. Eu segui torcendo arames, mas uma sombra entrou no meu peito aqueles dias, um mal vindo do Oeste, que aterrorizaria a terra média do meu inconsciente por muitos anos.

 

@jaquemachadoescritora

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