Alegoria da Praia

ILUSTRAÇÃO DE: Allthatisshe|Fotos Allthatisshe
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Alegoria da Praia

Fernando Balduino

[diástole, sístole:

a ventura d’uma nova vida se intensifica com a, agora livre e decidida, herança bestial . . .

            Encontramos esta história numa praia à noite, com um gente cuja natureza particular é completamente secundária. De fato, seria justo dizer que atua menos como pessoa e mais como objeto, sendo válidas todas as metáforas disso decorrentes. Agouro é, com efeito, seu ego ordinário: verossímil indivíduo mediano que, imerso no poluto profuso da presente sociedade, tem uma tendência pura de adequação – ou sujeição – à consciência coletiva; é, pois, mais um fraco, sem viço ou lustre, avariado (sob a perspectiva onisciente) sobre as (in)consequências de sua própria vida.

[diástole, sístole:

sem disfarce de excitação, o espírito fervilha num minúsculo átrio cardíaco. . .

            Caminhando soturnamente na orla mansa dos quentes meneios do crepúsculo tardio, o gente insiste em caminhar sem calçados por sobre as pesarosas e enluaradas areias; o quanto podendo, desviando-se (livre?) dos eventuais plásticos à paisana. Fazia-o a pouco e pouco… qual maçante é a dual rotina litorânea. Ao dia, pululam os turistas, dos velhos aos moços, amantes e ímpares, buscando refúgio folgazão à miséria da urbe néscia ou, quando muito, teatral; à noite, o refresco é das vagas, que, em movimentos de inércia, trazem um fulgor enigmático àquele que (sempre, nem sempre) o procura. Mas apreciar isso não sabia, o gente; mais notava, deveras, o quão suja era aquele beira-mar. Apesar desviasse dos troços com certo desapego, sabia que julgá-los seria, de uns modos e mais outros, hipocrisia. Conclui-se isto já sem muitos propósitos, e sagazmente poder-se-ia supor que valia-se era do bandeamento, pelo fatídico estupor médio. Afinal, o faziam todos, e longe dos olhos …

[diástole, sístole:

com a última barreira rompida, a vida prorrompe sem glória ou brilho, mas eriça aquele que a vê . . .

            E foi que chegou a um cais palanqueiro. Com a expectativa espontânea da sensação, foi ter com a visão altaneira d’um ponto escarpado do relevo praiano. Bem ali, ao sopé da falésia, a viu: pequeníssima e simpática criaturinha; de olhos grandes, visionários, e cheios de intenções, ainda que em meio aos destroços. Reconhecidamente rara; sim, muito rara. Mas estavam ambos ali, no momento: um sobre o cais, e o outro sob o lixo (qual e qual?), um observando atônito o outro, e o outro sequer oportuno para ver o um.
Pois aos poucos ia-se morrendo a criaturazinha, soterrada em meio ao lixo.

E parou de se mover.
E a observou. Tremeu, então, nervoso, e tremeu frio (muito, muito calor), e tremelicou incessantemente. Umtorvelinho de culpa, de remorso, e de tristeza acompanhados, ainda, de raiva e enjoo, invadiram-lhe o estômago, e as pernas, e o peito, e a cabeça. Tentada uma distração com os braços, rapidamente suspendeu-a pela vontade súbita de pular por sobre o lixo, e de experimentar qualquer tipo, sadio ou doentio, de reanimação do espírito perdido. Mas era tarde, e alguma meditação histérica lhe havia dito isto. De alguma maneira, corria, e queria gritar, queria cantar o mais bêbado e orgástico dos cânticos, queria submeter-se à mais oxigenada e atribulada das tempestades e enfrentar com sua própria garra a potência bélica de Adamastor ou do próprio Poseidon. Não segura! Qual desvencilho, perdão, redenção, contenção!

E foi ao mar.
Sentido, e de ressaca forte. Achou que merecia, afinal. Mais uma estrelinha no céu… fazem diferença, entre uma e duas? Talvez não; talvez nem, verdadeiramente, para alguns. Mas é tão bela a mansão… e todo lixo que viveu, nunca nele viveu. Nela, talvez. Não, na verdade, é bem certo. Há tantas magias dentro d’um ovo… quepequedissolvem-se em todo este calor. Ora, vaidade…. oque estás fazendo? Estes só podem ser pensamentos de um louco. Não importa se há verdade, ou mentiras, neste ou noutros cursos de ideias! São avariadas as inconsequências de sua própria vida.
Para o pensamento, alecrins; disse a amizade das gentes.
“E a criaturinha?” A ressaca levou, com o resto e mais uns outros.

[Nenhuns.
é assim interrompido o ritmo interno da vida, por um cochicho sublime e risonho do nada . . .

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